PRIMEIRA PESSOA

Só quero saber se ele continua vivo

Neide de Souza, de 65 anos, vai toda semana à Cracolândia em busca de notícias do filho Daniel, de 33 anos

query_builder 2 jun 2017, 20h30

Todo mundo desistiu dele — pai, irmãos, mulher, amigos. Menos eu. Mãe é mãe, né? Costumo vir para a Cracolândia três vezes por semana atrás de notícias dele. Trago sempre um lanchinho, uma troca de roupas. Olha aqui [mostra a mochila cheia que traz nas costas]. A coxinha que eu comprei para ele já deve ter esfriado. E ele não aparece. A menina [uma assistente social] já falou que viu meu filho aí dentro [aponta para o ‘fluxo’, onde se concentram os usuários]. Estou começando a ficar preocupada. Não o vejo desde a semana passada.

Isso aqui não é lugar de gente. Não suporto esse cheiro. É difícil para uma mãe ver o filho nessas condições. Dá vontade de chorar. Ele tem onde morar, um quartinho só para ele, um carrinho que é velho, mas dá para rodar pelo bairro. Mas ele não dá valor, prefere ficar jogado na rua. A dependência da droga é muito forte. É a pior coisa que existe no mundo.

Já consegui internar o Daniel mais de dez vezes — ele só vai quando eu levo. Na primeira, ficou três anos. Na época, deu até uma felicidade, mas depois ele voltou para a rua. Agora, não consegue ficar nem uma semana numa clínica. Não venho para cá achando que vou tirá-lo das ruas. É só para saber se ele está bem mesmo, se continua vivo. Enquanto há vida, há esperança.

Sabe como é, né? Mãe é sempre a última a saber. Fiquei sabendo que ele começou a cheirar cola com 14 anos. Quando fui descobrir, já era um viciado. Ele já está nessa vida faz uns dez anos, três só aqui na Cracolândia. Mas ele não é um filho ruim, não. Sempre me respeitou, nunca me maltratou, nunca fumou na minha frente, nunca mentiu para mim. Quando perguntei a primeira vez sobre o crack, ele respondeu: “não vou negar, eu uso”. Até hoje, quando ele me vê, sai correndo do ‘fluxo’ para me abraçar. “Ei, minha veinha”. É assim que ele me chama.

"Até hoje, quando ele me vê, sai correndo do ‘fluxo’ para me abraçar"

Ele é um homem bom. É pedreiro, trabalha bem, sabe fazer tudo o que é serviço braçal, de instalação elétrica a reboque de parede. Ele trabalhou um tempo com meu marido construindo as casas de uns ricos na Lapa. Agora é morador de rua. Quem é que vai dar emprego para esse tipo de gente?

Não tenho medo de entrar no fluxo, não. Eles olham para isso [mostra a bengala] e respeitam. Se alguém mexer comigo, eu dou na cabeça [ri a gargalhadas].

Eu estava aqui no domingo [dia 21 de junho] em que a polícia desmontou os barracos. Foi uma confusão generalizada. A polícia entrou nas casas, pegou um monte de gente pelo colarinho, os usuários começaram a achar ruim. E aí chegou a cavalaria e as bombas. Sorte que o Daniel não estava aqui. E eu logo fui embora. Vai que um tiro daqueles me pega.

Esse lugar não é para mim, não. Fui nascida e criada na igreja. Minha mãe era daquelas baianas rígidas que nos obrigava a ir para a igreja. Se não fosse, ela mostrava o chinelo. E a gente ia, chorando, mas ia. Em meus 65 anos, nunca coloquei um cigarro na boca. Trabalhei de copeira, de auxiliar de limpeza, em lanchonete, em banco, casa de família, em tudo o que é lugar. Hoje, minha aposentadoria mal dá para comprar um remédio e uma mistura. Sou a favor das coisas direitas. Pode ser filho meu, mas, se ele errar, a polícia pode levar.

Já vi muita coisa aqui. Uma vez cortaram um cara na minha frente. Formou uma poça de sangue, que escorreu por todo canto. Quando ficam ‘doidões’, eles se pegam mesmo, um fura o outro. Parece que estão com o demônio no corpo. Mas tenho fé que um dia isso vai cair por terra. Aquela imagem nunca saiu da minha cabeça.

Acho que vou embora para casa. Pelo jeito, ele não vai aparecer. Meus pés já estão doendo, tenho diabetes e pressão alta. Não posso ficar nervosa. Desde que fizeram a operação na Cracolândia, ficou mais difícil encontrá-lo. Antes, pelo menos tinha um lugar fixo. Semana passada, eu o vi na Praça Princesa Isabel. A minha memória já está começando a falhar. Não consigo me lembrar de um monte de coisa. Mas de um filho a gente nunca esquece.

(*) Reportagem de VEJA conversou com Neide em uma de suas andanças pela nova Cracolândia, a praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo
Depoimento colhido por por Eduardo Gonçalves
Foto por Ricardo Matsukawa