PRIMEIRA PESSOA

Convivo com a aids há 35 anos

Overland Airton Gayoso Miranda, 60 anos, artista plástico, escritor e designer

query_builder 30 nov 2017, 22h45

Convivo com o vírus HIV há pelo menos 35 anos, desde antes de ele ser descrito oficialmente na literatura médica [a primeira publicação sobre o isolamento do vírus da aids aconteceu em 1983]. Os primeiros sinais de que havia algo errado com meu corpo foram vários gânglios que apareceram no pescoço e na virilha, além de uma febre persistente. Minha mãe sempre dizia que gânglios eram sinal de infecção, por isso resolvi procurar um médico. Mas, como o vírus ainda não era conhecido, os resultados dos exames não apontavam nada. O problema é que a febre não cessava e os gânglios não desapareciam.

Entre os primeiros sintomas e o diagnóstico de HIV foram quase cinco anos de dúvidas e incertezas sobre o que eu tinha. Nesse período, eu controlava a febre com antitérmicos e fiz pelo menos umas quinze biópsias dos gânglios, sempre inconclusivas. Assim que o exame de HIV chegou ao Brasil, minha médica pediu que eu realizasse o teste no Hospital do Servidor Público Estadual, onde faço acompanhamento até hoje. Fiz tranquilo, sem imaginar ter a doença, pois sempre usei preservativos nas minhas relações sexuais. Quando fui buscar o resultado e o exame tinha dado positivo, meu mundo caiu. Fiquei transtornado. Para mim, estava ouvindo minha sentença de morte, achava que ia morrer a qualquer momento.

Desnorteado, corri para a casa de uma amiga, a Rosângela, que tinha dois filhos pequenos, e contei que era HIV positivo. Imagine isso numa época em que ninguém sabia quase nada sobre o vírus, como era a transmissão, nada. Só se sabia que era mortal. Ela me acolheu, disse que estaria sempre ao meu lado e sempre esteve. Depois, contei para outra grande amiga, a Nani, que também me apoiou. Eu morava com um companheiro havia quatro anos e terminei o relacionamento com ele, pois não tive coragem de contar minha situação. Sabia que ele não estava contaminado, pois sempre usávamos camisinha.

Eu não fazia ideia de como tinha me contaminado. Fui descobrir isso anos depois, ao receber uma carta de um piloto de avião com quem me envolvi uma única vez, depois de beber muito, e fazer sexo não consensual e sem preservativo. Na carta ele me pedia desculpas e contava que era HIV positivo. Tempos depois, ele morreu.

"O peso do preconceito era tão grande que eu saía do trabalho e fazia caminhadas do Leme ao Leblon para chegar em casa cansado e dormir. Eu só pensava em dormir."

Na época do diagnóstico, eu trabalhava em um banco privado no Leblon. Minha gerente foi muito cuidadosa comigo e me encaminhou para fazer análise – os custos da terapia seriam pagos pelo banco. Acontece que essa história vazou entre os colegas num período de auge da doença, de desconhecimento, de muito preconceito. Passei a viver um inferno no trabalho. Não havia um dia em que eu fosse ao banheiro e que não tivesse algo escrito nas portas me ofendendo. Se eu me sentasse em alguma cadeira, nenhuma outra pessoa queria se sentar nela. As pessoas deixaram de me cumprimentar, ficavam longe de mim.

O peso do preconceito era tão grande que eu saía do trabalho e fazia caminhadas do Leme ao Leblon para chegar em casa cansado e dormir. Eu só pensava em dormir. O AZT, primeiro coquetel antiaids, só foi lançado no Brasil uns cinco anos depois do meu diagnóstico [a droga foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária em 1992 e lançada em 1993]. Nesse período sem tratamento, vi diversos amigos morrer de aids, dia após dia. Houve uma fase em que eu cheguei a enterrar um amigo por semana. Não saía mais do cemitério.

Quando eu comecei a tomar o AZT, meus gânglios desapareceram do dia para a noite. Mas os efeitos colaterais eram perversos: diarreia, irritabilidade, cansaço, olhos amarelados e vômito. Tinha vergonha de sair na rua. Ainda assim, sempre segui o tratamento à risca: eu tomava quinze comprimidos por dia, religiosamente, às 6 horas, onde quer que estivesse.

"Experimente dizer para um grupo de amigos que você é soropositivo. Pelo menos um deles deve se afastar. Infelizmente, ainda é assim."

A primeira vez que falei publicamente sobre a doença foi em uma entrevista para a Xuxa, na TV Globo, nos anos 80. Eu não mostrei meu rosto, mas falei sobre como era viver com HIV naquela época de auge da doença. Acho que ela foi uma das primeiras apresentadoras a falar sobre o tema em TV aberta. A entrevista teve muita repercussão, e decidi escrever um livro sobre minha história [Passagem pra Vida, da Editora Globo]. Xuxa escreveu o prefácio.

Com o tempo passando, fui perdendo mais e mais amigos e pessoas próximas. Aposentei-me do banco por invalidez. Por um tempo fiquei trabalhando como voluntário numa sala no hospital para conversar com as pessoas recém-diagnosticadas para ver como elas reagiam. Numa dessas, um garoto de 18 anos pediu para usar o banheiro e não voltou mais. Não conseguiu lidar com o desespero do diagnóstico.

Depois tive depressão, me tornei uma pessoa bipolar, passei a me sentir muito sozinho. Os amigos se afastaram, dá para contar nos dedos quantos realmente ficaram ao meu lado. Cheguei a ficar pele e osso, pesando pouco mais de 30 quilos. Também enfrentei várias internações por doenças oportunistas – uma simples gripe pode me matar, pois minha imunidade é muito baixa. A mais recente não tem nem um ano.

Nesses mais de trinta anos convivendo dia após dia com o HIV, as dores das perdas e do preconceito até hoje machucam muito. O preconceito ainda existe, embora de maneira mais camuflada. Experimente dizer para um grupo de amigos que você é soropositivo. Certamente, pelo menos um deles deve se afastar. Infelizmente, ainda é assim.

Atualmente mudei a medicação e tomo só três remédios por dia. Levo uma vida absolutamente normal, apesar das restrições. Não posso beber e não aguento ficar muito tempo fora de casa. Mas, fora isso, ninguém olha para mim e diz que tenho uma doença. Devo muito da minha saúde à minha médica e ao meu analista, que são os meus super-heróis. Devo minha vida a eles.

O que mais me impressiona é que essa geração de jovens tem muita informação e, mesmo assim, o número de contaminados continua a crescer. Devem pensar que o coquetel é penicilina, que o coquetel cura. E não é. O coquetel de remédios é apenas um paliativo. Ainda estamos muito longe de encontrar a cura da aids, ela ainda é uma doença muito nova para a medicina, embora seja muito pesquisada. Cura, talvez, daqui a mais uns vinte anos. Enquanto isso não acontece, eu quero mais é viver.

Depoimento colhido por Fernanda Bassette
Foto Daniel Ramalho/VEJA.com