Eu tenho 41 anos e sou cineasta, roteirista e atriz. Também sou transexual, mas não me chame de Julia Katharine, cineasta trans – esse sufixo é inapropriado. Minha identidade de gênero não está relacionada à minha profissão. Ela está, sim, relacionada à minha história.
Acabo de exibir meu primeiro curta-metragem como diretora, Tea for Two, na Mostra de Cinema de Tiradentes, e não posso deixar de pensar no quanto tudo mudou desde que subi naquele palco há um ano. Na época, enxugava as lágrimas enquanto levantava o troféu que me reconhecia como “maior personalidade feminina” pela atuação no longa Lembro Mais dos Corvos. O filme foi dirigido pelo meu amigo Gustavo Vinagre, que se inspirou na minha história para narrar, entre anedotas fictícias e lembranças reais, um passado triste, mas contado com humor e leveza.
Soube que era diferente desde muito nova. Quando criança, sempre me senti mais próxima de minhas primas, com suas brincadeiras, seus jeitos e assuntos, do que de meus dois irmãos. Não me identificava em quase nada com o sexo masculino e, aos 7, contei para minha mãe que achava que era uma menina. Por algum tempo, ela me deixou expressar essa identidade dentro de casa, mas não na rua - ela não queria que eu fosse mulher diante do mundo. Até hoje não quer. Passaram-se décadas até que eu entendesse que minha mera existência era um ato político, mas, na época, eu não pensava nisso. Só queria ser eu mesma e, então, fui.
Minha paixão por filmes é quase tão antiga quanto essas memórias. Por muitas vezes, na infância, escapei das pessoas me enfiando em salas de cinema e fitas de VHS e, logo, decidi que queria trabalhar com isso quando crescesse. Mas aqueles eram os anos 1980 e tudo o que ouvia era que nunca teria chance. “Julia, isso é impossível”, eles repetiam, todos os dias. Com o tempo, ficou claro que esperavam que eu procurasse outras formas de sobreviver, de fazer parte do mundo – formas que eles consideravam mais adequadas a uma mulher trans. Prostituição, por exemplo.
Isso me frustrou muito, não queria acreditar que o sonho não se realizaria. E, por muito tempo, ele não se realizou mesmo. Quando finalmente consegui um trabalho no extinto site Mix Brasil, as coisas começaram a mudar. Lá conheci o Gustavo, que ainda era um estagiário e era quase dez anos mais novo do que eu, mas o amor pelo cinema nos aproximou e nasceu ali uma amizade muito bonita.
O tempo passou, Gustavo foi para Cuba estudar cinema e fui para o Japão trabalhar como dekassegui. Tinha perdido meu pai e, por mais que ele tivesse passado praticamente a vida toda no Japão, senti um vazio e decidi que iria ao país natal dele para conhecer sua história. Mas a viagem não saiu como o esperado, passei anos pulando de um trabalho para o outro e sofrendo muito preconceito por ser trans.
De volta ao Brasil, o Gustavo me reencontrou, pelo Facebook, e salvou minha vida. Meu primeiro trabalho com ele foi num curta chamado Os Cuidados que Se Tem com os Cuidados que os Outros Devem Ter Consigo Mesmos (nunca vou conseguir decorar esse título) e, desde então, já fizemos cinco ou seis filmes, incluindo o longa Lembro Mais dos Corvos, que me trouxe até aqui.
Sempre fui muito insegura com questões de autoestima, porque a mulher transexual é sempre subestimada, negligenciada e invisível. E o filme tinha meu rosto estampado do começo ao fim. Mesmo assim, foi muito bem recebido. Isso foi um divisor de águas para mim. Me senti uma Cinderela encarnada, uma privilegiada, e pensei no festival de Tiradentes como minha fada madrinha. Porque foi mágico, não foi? O filme teve uma carreira linda, ganhou oito prêmios em festivais e, logo em seguida, estava filmando o meu primeiro curta. Agora já estou preparando meu primeiro longa – um roteiro meu, dirigido por mim, que se chama Família Valente.
Em fevereiro, meu curta será exibido em circuito comercial junto com o longa Lembro Mais dos Corvos, graças ao apoio da Vitrine Filmes, que teve a ousadia de colocar um filme curto numa sessão regular de cinema. Soube que ele será o primeiro dirigido por uma pessoa trans a estrear nos cinemas brasileiros e fiquei chocada. Conheço vários cineastas trans (tem a Galba Gogóia, o Ariel Nobre...) e achava que eles já estavam inseridos nesse mundo. Começamos todos muito próximos e talvez eu seja apenas parte de uma turma de pioneiros num mundo que está nascendo.
Fico feliz de ser uma das protagonistas dessa mudança. Sinto que sou uma peça importante para a construção de um novo pensamento de sociedade, mais inclusiva, que veja a mulher transexual como uma mulher comum. Hoje, me sinto militante. Mas não para ir para a rua com um cartaz ou participar de passeatas: minha militância é existir fazendo cinema. Todos os filmes que eu fizer daqui para a frente terão personagens transexuais, com suas histórias contadas e apresentadas de forma muito natural. Como uma imagem de afirmação, até que não haja mais a segregação, que não se diga “mulher cis, mulher trans”, “homem cis, homem trans”. Mas sim “homem”, “mulher”, “pessoa”, “artista”. Apenas Julia Katharine: cineasta, roteirista, atriz.
Depoimento dado a Juliana Varella
Foto: Leo Lara / Universo Produções