Sou médica veterinária da prefeitura de Porto Alegre, tenho 70 anos, sou mãe de três filhos e tenho três netas. Aos 21 anos , fui presa pela ditadura militar e sofri diversos tipos de tortura durante o ano em que fiquei presa sem julgamento. Durante o parto dos meus primeiros filhos, a dor das contrações me faziam recordar do terror da sala de tortura.
Nasci na capital gaúcha, mas cresci em Uruguaiana, na fronteira com Argentina. Meu tio, Ulisses Vilar, era o único adulto que tinha paciência para conversar com as crianças da família e responder às nossas curiosidades. Ele era do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois se mudou para o Uruguai, na cidade de Rivera, na fronteira com a brasileira Santana do Livramento.
Aos 14 anos eu saía de Uruguaiana e ia até Livramento para levar a correspondência para os exilados. Escondia os envelopes embaixo de latas de biscoitos uruguaios dentro do saco de viagem. Meu tio me orientou a não me envolver com o movimento estudantil.
Em seguida veio o golpe de 1964. Minha família estava de volta a Porto Alegre. Naquele 1º de abril, saí para comprar pão e leite. Na esquina, vi as barricadas na rua e os soldados armados.
Eram tempos de repressão. Após completar 18 anos, decidi ser paraquedista e experimentar a sensação de liberdade que não tínhamos. Fiz curso com militares da ativa, que mantinham o Clube de Paraquedismo.
Foi na Universidade Federal do Rio Grande do Sul que passei a ter contato com pessoas de esquerda e integrei o Diretório Central de Estudantes (DCE) “paralelo” porque não era permitido a votação para representante dos alunos, assim como o reitor também era escolhido pelo governo.
Fizemos uma caminhada de protesto até o consulado dos Estados Unidos. Bateram muito nos estudantes, mas foram além. Depois de fugirmos para o telhado de um prédio, ouvimos tiros em nossa direção. As balas passavam de raspão pelas nossas cabeças.
Ao perceber que a ditadura tinha chegado a esse ponto, decidi entrar para a VAR- Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares). Nosso treinamento de sobrevivência foi feito por um militar do Exército, que hoje está aposentado. A única pessoa que sabe quem ele é sou eu, os outros já morreram. Jamais revelarei seu nome. Meu codinome era Martinha, e muitos ainda me chamam assim.
"Nos dois primeiros partos, a dor das contrações faziam eu lembrar das sessões de tortura"
A gente queria acabar com a ditadura, mas éramos ingênuos. Olhando para trás, percebo que não tínhamos condição de derrubar o regime. Não pregávamos uma ditadura de esquerda como dizem. A gente queria democracia.
Fui presa em um domingo de abril de 1970 junto com a minha mãe, meus irmãos e os amigos deles que estavam lá em casa. Eles foram liberados logo, mas a ficha no Dops prejudicou a busca deles por emprego.
Quem fez meu interrogatório foi o delegado Pedro Seelig, ainda sem me bater. Eles trouxeram para sala o meu então namorado , que estava desfigurado de tanto apanhar. Ele fingiu que não me conhecia e o olhar dele meu deu ânimo. De dia, não havia tortura porque circulava público no Dops. Porém, à noite, a tortura começava e só terminava de manhã, quando o expediente era retomado.
Fui torturada pelo Paulo Malhães, do CIE (Centro de Informações do Exército). Ele foi assassinado em 2014, aos 76 anos. A suspeita foi de queima de arquivo, porque ele admitiu as torturas na Comissão Nacional da Verdade e disse não se arrepender de nada. Ele ia falar mais.
O Malhães, que na época era major, tinha uma técnica de tortura em pontos sensíveis do corpo, em terminações nervosas, que não deixava marcas. Eu servia de cobaia para ele ensinar aos outros.
Eu sabia que seria torturada quando colocavam um capuz preto na minha cabeça e me levavam para uma sala escura. Nua, eu recebia choque elétrico na vagina e no ânus. A corrente elétrica faz urinar e evacuar. Os choques eram feitos com a chamada “Maricota”. Quando era para dar choque na cabeça, colocavam a ponta de um fio em cada orelha. Eles diziam que iriam “colocar os brincos”. Às vezes, faziam a gente ficar de mãos dadas tomando o choque junto. É degradante, humilhante.
Tinha também o pau de arara, que causa uma dor horrorosa. Nessa posição prendem os pulsos junto dos tornozelos, de cabeça para baixo. Você fica completamente indefeso. Muitas vezes o pau de arara era combinado com afogamento, a cabeça no balde ou com uma mangueira que derramava água no nariz e na boca.
E havia ainda a tortura sexual. Fui estuprada, até objetos usavam. Depois que eu saí da prisão e tentei retomar minha vida, não conseguia ter relações sexuais com meu marido, pai dos meus três filhos. Ele me ajudou muito a superar tudo. Nos dois primeiros partos, a dor das contrações me fazia lembrar das sessões de tortura. Começou a voltar tudo na minha cabeça.
Meu leite secou quando eu soube que finalmente teria a data do meu julgamento. Não consegui mais amamentar minha filha, eu temia voltar para a cadeia. Fui condenada, mas já tinha cumprido a pena. Eles queriam que eu ficasse mais vinte anos presa.
Fiz terapia para me curar desses traumas. Nunca tive coragem de contar os detalhes da tortura para os meus filhos ou para a minha mãe. Moramos no Rio de Janeiro e eles marcharam comigo em 1978 pedindo anistia aos presos políticos usando as camisetinhas do Henfil.
Quando lembro da tortura, posso dizer que conheci a besta humana. Conheci o lado mais nefasto. Mas, se a gente se decepciona com algumas coisas, também se impressiona com outras. Posso dizer, por outro lado, que conheci o lado mais maravilhoso do ser humano, que é a solidariedade. Os presos eram muito solidários uns com os outros. Existe o mal, mas também existe o bem e a busca por um mundo mais igual.
Depoimento colhido por Paula Sperb
Foto: Paula Sperb