PRIMEIRA PESSOA

Só consigo pensar na falta que ela me faz

Ilda Cardoso, 50 anos, mãe de Mayara, musicista assassinada a golpes de martelo

query_builder 9 ago 2017, 15h00

Na manhã do dia 25 de julho, acordei com um aperto no peito. Comentei por alto com o meu marido, mas não sabia explicar o que era aquela angústia. À tarde, fui ao curso de corte e costura que faço como hobby. Pela primeira vez, havia esquecido todo o meu material em casa. A instrutora chamou minha atenção pelo lapso, mas não me deixou voltar para não perder a aula. Na verdade, parecia que eu não estava ali. Quando saí do curso, por volta das 17 horas, minha filha Mayara Amaral já estava desaparecida. Havia mandado mensagens para ela via WhatsApp o dia inteiro, sem nenhum retorno. Ela nem sequer tinha lido. Por volta das 23 horas, recebi uma resposta. O ideal seria que eu ficasse feliz. Mas ocorreu o contrário. Senti um frio na espinha. Minhas pernas não sustentavam mais o corpo. Ali, exatamente às 23h35 da segunda-feira, tive o pressentimento de que minha filha estava morta. A mensagem que vinha do celular da Mayara era, na verdade, de Luís Alberto, o assassino que a matou cruelmente com três marteladas em sua cabeça dentro de um motel. Assim que chegou aquela mensagem, por mais que eu me recusasse a acreditar, já sofria a dor da perda. Era uma daquelas intuições que só mãe tem. A partir daquele momento, já sentia luto. Na manhã do dia seguinte, fui a uma delegacia registrar queixa do desaparecimento da Mayara. Quando contei a história das mensagens, um policial disse que haviam encontrado um corpo carbonizado em uma área de pasto. É impressionante como eles já falavam comigo cheios de dedos. Perguntaram com muita delicadeza se eu poderia ver as fotos do corpo. Respirei fundo e respondi que sim. Era a minha filha. Ao chegar em casa, descobri que o meu marido e o ex-marido da Mayara já haviam identificado o corpo no Instituto Médico-Legal. O reconhecimento só foi possível porque o fogo não queimou os pés da minha filha.

Estou vivendo à base de medicamentos. Quando vou dormir, passa pela minha cabeça um cineminha só com imagens boas da Mayara. Como era determinada a ser uma mulher culta, carinhosa e cheia de vida. Ela vinha almoçar em casa e sempre me trazia um livro de presente, dizendo que o poder da leitura é imensurável. Dizia para mim que, se eu quisesse conversar com pessoas inteligentes, teria de ler muito. Não sei como encontro forças para me levantar da cama. Minha filha não merecia esse final triste. Mayara foi uma criança muito séria. Aos 9 anos tocou violão pela primeira vez. Desde então, nunca mais largou o instrumento. Era uma menina de poucos sorrisos e muito fechada. Casou-se muito cedo, mas foi feliz por dez anos com o marido. Até que resolveu se separar, dizendo que queria viver outras experiências. Eu fiz o alerta: vá com cuidado, filha. Ela só respondeu: “Eu sei me cuidar”.

"Sinceramente, agora, não me importa se ela foi vítima de latrocínio, homicídio, feminicídio ou sei lá o quê. Minha filha não está mais aqui comigo"

Minha maior preocupação neste momento é saber como vou dar essa notícia para a avó da Mayara, que tem 96 anos, não sabe de nada até agora e já começou a perguntar por que a neta não tem dado notícias. Foi ela quem disse à minha filha certa vez que a leitura é o maior tesouro que alguém pode ter. Na época em que Mayara se preparava para a prova prática do vestibular para o curso de música na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, ensaiava sem parar, o dia inteiro, a Grande Valse Brillante em Mi Bemol Maior, de Frédéric Chopin. Nós, em casa, não aguentávamos mais ouvir. No dia da prova, ela não tocou, e ficamos preocupados. Ficou só batendo com os dedos nas cordas do violão. Foi aí que perguntei: “Não vai ensaiar hoje, filha?”. Ela só respondeu: “Não. Vou só me aquecer”. Fiquei aliviada porque achava que ela havia desistido. Sinceramente, agora, não me importa se ela foi vítima de latrocínio, homicídio, feminicídio ou sei lá o quê. Minha filha não está mais aqui comigo. Virou estatística. Só consigo pensar no sofrimento que ela passou desde que se encontrou com o seu algoz e na falta que ela me faz.

Depoimento colhido por Ullisses Campbell
Foto por Jefferson Copolla/VEJA