Quando entrei no plenário da Organização das Nações Unidas (ONU) e pedi maior participação feminina nas missões de paz na África, em março passado, eu sabia que todos os ministros de Defesa do mundo estavam naquela plateia. Hoje, a presença feminina gira em torno de 4% do contingente, mas o objetivo é chegar a pelo menos 15%. A interação dessa patrulha mista com as mulheres locais é fundamental. O prêmio de Defensora Militar do Gênero que eu e outras oficiais recebemos naquele momento deixou claro que a mulher pode contribuir tanto quanto qualquer homem.
Poucos dias depois, terminei o meu trabalho de um ano na Missão de Paz da ONU na República Centro-Africana, a Minusca. Conforme a doutrina das Nações Unidas, a noção de gênero envolve os papéis e as expectativas que a sociedade tem sobre você, de acordo com a sua condição biológica, o seu sexo. Por exemplo, há situações em que os homens estão mais vulneráveis. No caso da República Centro-Africana, um grande grupo de homens adultos trabalha nas minas de diamantes sem condições de segurança. Já as crianças são frequentemente recrutadas como meninos-soldados.
Mas por que falamos mais das mulheres como seres vulneráveis? Porque dentro daquela sociedade, elas não têm voz. No interior do país, muito agrícola, as mulheres são invisíveis, e o trabalho de gênero tem o objetivo de gerar uma situação um pouco mais justa e igual para elas. Por isso, meu trabalho começou por ouvir as mulheres, entender melhor o que estava acontecendo ali. Descobri que elas não podiam circular livremente por causa da presença de grupos armados e do temor do abuso sexual.
A violência acontece com requintes de crueldade e, muitas vezes, termina em assassinatos. Às vezes, a própria configuração do país acaba contribuindo para perpetuar esses crimes. Por não haver rede elétrica nem água encanada, as mulheres têm de sair de casa para buscar água e lenha e acabam expostas. Meninas das regiões mais remotas são sequestradas para servir como escravas sexuais. É um país que sente o peso de ser muito rico em recursos naturais e no número de violações.
A Minusca aumentou a presença militar, de forma a prevenir as pessoas de se exporem a situações perigosas. Nós não trabalhamos sozinhos. Somos acompanhados por civis e policiais. Mas o nosso papel também inclui garantir que o pessoal da ajuda humanitária e do governo tenha segurança para trabalhar. Às vezes a gente ficava sem comer, passava horas em um helicóptero e se expunha aos mais diversos riscos. Gostava de estar ali junto da comunidade, de mostrar-me presente e de dizer "eu estou aqui, e você está seguro”. É algo que faz você se sentir com poderes que não tem, porque somos apenas humanos. Mas a confiança das pessoas sempre me causou admiração. Foi o que me fez ser voluntária. Quando ponho meu camuflado, eu me sinto na condição de ajudar alguém.
"Gostava de estar ali junto da comunidade, de dizer 'eu estou aqui, e você está seguro'. É algo que faz você se sentir com poderes que não tem, porque somos apenas humanos. Mas a confiança das pessoas sempre me causou admiração."
Quero participar de uma outra missão. É uma experiência totalmente diferente. Você abre mão do seu conforto, fica longe da sua família, convive com outra cultura e seu entendimento passa a ser muito maior. Eu vejo o trabalho de paz como um exercício de compreensão, de aceitação do outro. Diria que foi a melhor experiência da minha vida.
Nesses doze meses, eu me ausentei apenas duas vezes do serviço: no Natal e para receber o prêmio das mãos do secretário-geral da ONU, António Guterrez. Nascida e criada em Teresópolis (RJ), cheguei à vida adulta sem jamais ter cogitado essa experiência. Na minha família, não tive influências para seguir a área militar. O meu pai é um pintor de paredes, e minha mãe, uma vendedora de cosméticos que sempre incentivou o meu amor pelos livros e pelos estudos.
No fim da adolescência, eu me graduei na Escola Normal e lecionei por sete anos na rede pública do Rio. O salário de professora me ajudou a pagar a faculdade de análise de sistemas e, sem saber, esse caminho me levava em direção às Forças Armadas. Logo depois da formatura, vi um edital da Marinha de recrutamento de analistas de sistema. Nessa época, eu já namorava meu atual marido, um policial militar no Rio, que sempre apoiou as minhas ambições. Fui aprovada há dezoito anos.
No início, minha carreira era mais técnica. Continuei em Teresópolis, viajando cinco horas por dia para ir ao Rio e voltar. Com o tempo, veio a recompensa: fui para o que realmente queria, a área operativa. Trabalhei por muito tempo no controle de tráfego marítimo e no treinamento e exercícios para os oficiais. Isso foi de grande serventia na missão de paz, quando ajudei a treinar tropas e a mapear as áreas de risco na República Centro-Africana.
Virei uma “boina-azul” muito tempo depois, quando a Marinha convocou voluntários para a Minusca. Diferentemente das outras Forças, na Armada você se candidata e se submete a uma série de exames. Fui chamada para uma das vagas disponíveis e tive dois meses de aulas preparatórias até viajar para a última fase, um curso intensivo de uma semana em Uganda. Para os trabalhos de estabilização na República Centro-Africana, o inglês é obrigatório, e o francês, desejável. O meu interesse pelos estudos se fez útil mais uma vez, porque esses são os idiomas que eu domino. A integração com a área marítima Atlântico Sul me rendeu um “portunhol” que aumentou o alcance do meu trabalho, com palestras para tropas de países de língua espanhola.
Claro que, depois de ter vivido a situação da República Centro-Africana, não há como voltar para casa sentindo que fiz o suficiente. Mesmo sabendo que me dediquei, fico pensando que poderia ter feito mais, que deveria fazer mais uma visita, ir a uma outra localidade. É um sentimento complexo.
Depoimento dado a Pietra Carvalho
Foto: Cia Pak/UN Photo