PRIMEIRA PESSOA

Já nasci mulher

Maria Clara Spinelli, 41, atriz transgênero da dramaturgia da Globo

query_builder 4 jan 2017, 19h40

Meu cabelo sempre foi comprido, eu me depilei a vida toda e fui o mais feminina possível. Já nasci mulher, não houve um dia específico em que tenha me descoberto. Hoje, sou física, social e legalmente Maria Clara Spinelli Rodrigues e, para minha surpresa, sofro bem menos preconceito do que antes. Na infância, eu me identificava com a personagem Scarlett O’Hara, de ...E o Vento Levou, um arquétipo feminino muito forte. E, vendo Vivien ­Leigh atuar, entendi o que era ser atriz — uma pessoa que vive uma história que não é a dela. Isso abriu na minha cabeça de criança a possibilidade de seguir essa profissão.

Aos 12 anos, comecei a estudar artes cênicas em Assis, cidade paulista onde nasci e cresci. Em 2009, protagonizei o filme Quanto Dura o Amor?, do diretor Roberto Moreira. Fui premiada como melhor atriz no Festival Paulínia de Cinema, no Hollywood Brazilian Film Festival e no Monaco Charity Film Festival. Fiz testes na Globo até que o produtor de elenco Luiz Antônio Rocha me convidou para uma ponta na novela Salve Jorge, em 2012, no papel de Anita. Era uma personagem que havia sido traficada para a Turquia na esperança de juntar dinheiro para uma operação de mudança de sexo. A Janette, da minissérie Supermax, veio em 2016. Estarei em um novo papel trans em breve: a Kelly, presa em uma cadeia masculina na minissérie Carcereiros, prevista para janeiro.

Ao longo da vida, procurei psicólogos e psiquiatras para obter um laudo que me permitisse fazer um tratamento específico e a cirurgia. Na infância, meus pais perceberam que eu era diferente e tentaram me ajudar. Um dos terapeutas a que fui levada queria buscar “a cura”. Sua prescrição: eu deveria praticar esportes masculinos, conviver com meninos. Chegaram a me pôr no caratê, uma tortura para mim. Sofri muito bullying, quando ainda não havia um nome para isso. Lá pelos 14 anos, frequentava, em razão de uma bolsa, um colégio particular que passou a separar meninos e meninas. Fiquei na sala dos garotos, e foi horrível. Eles eram ­cruéis. Certa vez, um professor perguntou à classe: “Quem faz barulho na hora de fazer xixi?”. Um aluno respondeu: “Ninguém, mas tem um aqui que faz sentado”. Todo mundo riu. No fim do ano, estava esgotada emocionalmente. Na hora da aula, saía à procura de lugares para poder me isolar. Passei várias manhãs num cemitério — escrevendo, lendo ou apenas andando entre as lápides. Por mais que fosse um lugar fúnebre, achava lá a paz que eu não conhecia na escola.

Mesmo os professores e os colegas que não concordavam com a hostilização estavam igualmente me agredindo quando respondiam com o silêncio às cenas que presenciavam. Sei me defender de alguém que me ataca, mas não daqueles que se omitem. Hoje, busco ser um exemplo positivo para crianças transgêneros que me procuram. Explico que são perfeitas e bonitas. Dias atrás, uma enviou um desenho com todas as minhas personagens. Na classe artística, encontrei muito preconceito, mas mais velado que na cidade pequena. Fui convidada uma vez a fazer um teste para uma personagem trans, mas, ao ler o roteiro, me identifiquei com a protagonista no jeito e no tipo físico, e pedi para tentar esse personagem. A diretora simplesmente não falou nada. Na minha carreira, representei papéis variados, mas especialmente de pessoas trans — histórias incríveis, que mereciam ser narradas. Mas não quero ficar limitada a isso. Jared Leto fez bem a Rayon em Clube de Compras Dallas. Eu também já provei que posso ir além. Um ator não tem sexo nem idade.

Depoimento colhido por Mabi Barros
Foto por Renato Rocha Miranda/Globo