Nasci na Polônia em 1924, na cidade de Cracóvia, onde morei com meus pais e meus dois irmãos até o começo da II Guerra Mundial. Com 15 anos minha vida mudou completamente, virou um pesadelo. Depois da invasão alemã à Polônia, meus dois irmãos mais velhos, com medo de morrer, fugiram para a Rússia e eu e meus pais nos mudamos para uma pequena aldeia no interior, menos visada que a capital do país. Vivemos lá por nove meses, até que um decreto nazista ordenou que todos os judeus voltassem para as cidades grandes. Meus pais decidiram obedecer, mas eu fiquei na aldeia, vivendo na clandestinidade. Eu trabalhava de noite e de dia para poder me alimentar. Varria, cuidava do lixo e dos jardins das casas, eu trabalhava em que podia e quando podia. De noite, com medo de ser pego pelos nazistas, eu me escondia em buracos cavados na terra para estoque de alimentos. Em troca do meu trabalho os aldeões me davam um prato de comida por dia, que deixavam do lado de fora da porta de suas casas, como se deixa para um cachorro.
Meus pais foram enviados para o campo de concentração de Majdanek, onde foram assassinados nas câmaras de gás. Eu sobrevivia escondido na aldeia até que um de meus irmãos me encontrou. Ele não aguentou permanecer sempre fugindo e decidiu voltar à Polônia. No dia 3 de março de 1943 entramos no gueto de Cracóvia. Dez dias depois fomos aprisionados e enviados para o campo de Plaszów, onde me ocupei como alfaiate por alguns meses. A vida lá era muito sofrida, cada dia que eu sobrevivia era uma vitória.
Depois de uns meses em Plaszów, nos levaram de trem até o temido campo de Auschwitz. Tivemos muita sorte, pois fomos escolhidos para trabalhar no campo de Mauthausen, enquanto muitos outros foram mortos nas câmaras de gás. Nos dias que ficamos lá tivemos de fazer um trabalho pesado, carregar grandes pedras por uma escada de 102 degraus, descarregá-las e depois descer novamente para recomeçar. Trabalho de Sísifo: inútil e sem esperança. Depois, fomos mandados para o campo de Melk, onde se cavavam túneis que iriam conectar fábricas de armas alemãs. Fui escolhido para trabalhar como chefe de carpinteiro de uma equipe de dez pessoas dentro dos túneis. Um dos mestres do campo, um austríaco, era muito bom comigo e, mesmo correndo risco de vida, costumava me dar pedaços de pão para comer, o que me ajudou a sobreviver. Após alguns meses, fomos novamente enviados para outro campo, dessa vez de Ebensee.
Fizemos parte do percurso até lá de trem, mas tivemos de caminhar por aproximadamente 100 quilômetros. Andávamos em fila e aqueles que não conseguiam mais continuar por exaustão eram executados à sangue frio, na frente de todo mundo. Quando avançávamos podíamos ver dezenas de corpos deixados para trás; os nazistas não enterravam os mortos e não nos permitiam fazer isso. Os pés do meu irmão doíam tanto que ele simplesmente desistiu, mas consegui carrega-lo até chegarmos ao nosso destino. Ebensee era considerado um dos piores campos da Europa, pois a sobrevivência máxima lá era de apenas quatro semanas. Tinha certeza que iria lá para morrer. Essa caminhada rumo à morte foi um dos piores momentos da minha vida.
Mas, mais uma vez, um golpe de sorte salvou minha vida. Fui escolhido para participar de um grupo que deveria trabalhar na desobstrução de uma linha de trem que fora atingida por um bombardeio americano. Os vagões do trem destruído estavam cheios de mantimentos, como farinha, chicória, sal e açúcar. Comemos tudo que era possível e escondemos parte da comida em nossas roupas. Isso provavelmente prolongou minha vida mais um pouco, pois nessa época cheguei a pesar apenas 30 quilos, era pele e osso, não me reconhecia no espelho. Depois de alguns dias, acordamos com gritos de “portões abertos”, “não há mais guardas”. Era dia 5 de maio de 1945, o penúltimo dia da guerra. Fomos resgatados por soldados americanos que nos levaram para os acampamentos de recuperação montados pelo exército dos aliados. Lá, com a correspondência restabelecida, nosso irmão mais velho conseguiu nos contatar e avisou que estava se mudando para o Brasil. Nesse momento minha cabeça clareou e eu decidi que também iria, queria fugir deixar aquele terror para trás e reconstruir minha vida o mais rápido possível.
Cheguei ao Brasil em março de 1947, sem falar uma palavra de português. Trabalhei 35 anos no ramo de confecção, conheci minha mulher e tivemos dois filhos, quatro netos e um bisneto. Durante os primeiros anos não gostava de falar sobre meu passado, mas quando tive a chance de retornar pela primeira vez a Polônia com minha família percebi que não podia mais ficar calado. Só contando minha história as pessoas vão saber o que aconteceu e poderão evitar que esse pesadelo se repita.
Depoimento colhido por Julia Braun
Foto por Felipe Cotrim/VEJA.com