PRIMEIRA PESSOA

Antes de fechar os olhos, ouvi os tiros: mataram meu marido

Ana*, 50 anos, é nigeriana e viu sua cidade ser invadida pelo Boko Haram. Hoje recebe auxílio da organização cristã Portas Abertas e viaja contando sua história

query_builder 17 de ago 2018, 7h00

O Boko Haram chegou a nossa cidade em 29 de outubro de 2014. Antes que pudéssemos perceber, estavam em todos os lugares incendiando prédios, gritando e atirando para todo lado. Ouvíamos seus aviões derrubando bombas.

Meus filhos e seus primos estavam na escola, mas eles perceberam logo o que estava acontecendo e fugiram com a tia. Eu estava trabalhando no hospital e só fiquei sabendo o que se passava quando meu marido conseguiu me ligar. Quando saí na rua, todo mundo estava correndo, os terroristas atirando, e os aviões jogando bombas. Eu via vacas, bodes e outros animais correndo em meio às pessoas.

Consegui chegar em casa e descobri que meus filhos tinham fugido para um vilarejo vizinho. Meu marido gritava, pedindo que arrumássemos nossas coisas no carro para irmos embora. Quando estávamos prestes a deixar a cidade, encontramos um terrorista do Boko Haram na estrada. Logo depois, vimos muitos deles. Meu marido tentou dar a volta, mas eles nos cercaram e ordenaram que descêssemos do carro.

“Vocês são muçulmanos ou infiéis? ” Meu marido respondeu que era cristão, ajoelhou-se e começou a rezar. Também orei, mas, antes de fechar os olhos, ouvi os tiros: mataram meu marido. Eu não conseguia falar, senti que meu espírito tinha deixado o meu corpo, tocava meus braços me perguntando se tudo aquilo era real.

Eles me fizeram as mesmas perguntas, e respondi que era cristã, como meu marido. Fechei os olhos e me preparei para morrer. “Pare! ” Abri os olhos e vi outro terrorista se aproximar e ordenar aos outros que me deixassem ir. Eles revistaram meu carro, pegaram os objetos de valor e me mandaram embora. Antes de deixar a cidade, vi um homem ser morto em seu próprio carro e o veículo cair em um rio. Ele estava tentando escapar com sua família quando foi atingido por um tiro.

Os terroristas do Boko Haram resgataram as crianças, que estavam se afogando. Eles me pararam e ordenaram que eu levasse aquelas crianças para o hospital. No meio do caminho, me dei conta de tudo que me havia acontecido e comecei a chorar. Meu corpo entrou em choque, meus lábios tremiam. Eu não conseguia mais dirigir.

"Nós estamos sempre prontos para o pior. Gostaria de deixar a cidade, mas não tenho dinheiro"

Deixei as crianças ali, dei o carro a um vizinho e saí correndo. Encontrei alguns conhecidos, que também iam buscar seus filhos no mesmo vilarejo. Quando finalmente chegamos lá, de carro, encontrei meu filho mais velho. Foi ele quem me reconheceu, na verdade, porque meus olhos não pareciam enxergar mais nada. Depois encontrei meus outros quatro filhos e minha irmã.

Passamos algumas horas no vilarejo, até percebermos que precisávamos continuar fugindo. O Boko Haram atacava as cidades próximas. Para sair dali, tivemos de escalar cinco montanhas. Passamos a primeira noite na casa de cristãos, que nos acolheram, mas depois dormimos ao relento. Andamos mais um dia e conseguimos nos comunicar com meu irmão, que mora na capital do estado. Ele enviou um ônibus para nos buscar.

Depois de 21 dias, o governo retomou minha cidade, e pudemos voltar. Encontrei o corpo do meu marido e pude fazer-lhe o funeral.

Em nossa casa, tudo estava destruído. As portas e janelas estavam quebradas e nossos bens haviam sido saqueados. As igrejas da cidade foram incendiadas. Muitos amigos e irmãos da comunidade foram mortos. Tantos que eu nem tenho como contar. Apesar do tratamento diferente que ainda recebemos dos muçulmanos, conseguimos reconstruir nossas vidas e reerguer as igrejas, agora cheias de viúvas.

Houve outras tentativas de retorno do Boko Haram. A cidade ainda não é segura. Há muitos ataques com bombas em mesquitas e sequestros de jovens. Nós estamos sempre prontos para o pior. Gostaria de deixar a cidade, mas não tenho dinheiro.

Conheci a organização Portas Abertas por meio de um pastor. A instituição me ajuda com a educação dos meus filhos e com outras necessidades. Em 2015, me convidou a visitar o Brasil. No começo, não gostei da ideia, estava cheia de traumas. Mas quando cheguei aqui e cantei e dancei com outras mulheres das igrejas, minha energia voltou. Retornei para a Nigéria renascida, cheia de sorriso no rosto.

Em 2018, quando me convidaram novamente, fiquei muito feliz. Também fui para a Holanda e para a Alemanha compartilhar meu testemunho. Contar minha história é a forma que tenho de encorajar outras mulheres que passaram por situações parecidas com a minha.

Depoimento colhido por Julia Braun
Foto: Heitor Feitosa


* Nome trocado por motivos de segurança