“Mãe, acho que eles não vão me querer lá no ano que vem”. Estávamos no carro quando minha filha, de 13 anos, pressentiu o que aconteceria naquele dia. Ela já sabia que a escola onde estudava desde os 2 anos, a Educar Sesc, a expulsaria simplesmente porque ela é uma menina trans.
Quando meu marido e eu escolhemos essa escola, o que nos encantou foi o projeto pedagógico. Parecia ser muito inclusiva. Muito antes de termos ideia de nossa filha era trans, prezávamos pela diversidade. Queríamos que ela tivesse oportunidade de aprender com as diferenças.
Minha filha sempre foi muito introvertida, não sorria nem conversava. Estava sempre com fone de ouvido e dizia ser a criança mais feia do colégio. Quando entrou na pré-adolescência, chegou em casa dizendo que estava apaixonada por um menino. Então passou a usar lápis preto nos olhos e esmalte escuro nas mãos, um estilo meio gótico. Um dia, foi de batom vermelho para a escola. Puxei assunto para falarmos sobre o que estava acontecendo. Então, ouvi algo mais ou menos assim: “Mãe, queria mesmo uma oportunidade para conversar com você. Gosto do universo feminino. Eu me sinto menina. Antes não entendia por que me achava tão feia, por que era retraída. Alguma coisa me incomodava. Agora, que estou ficando adolescente, descobri. Cheguei a conclusão que sou uma menina trans”.
Como toda família deveria fazer, apoiamos desde o começo e buscamos informação em grupos LGBT. Falei para minha filha que ninguém nasce e cresce sendo a mesma pessoa. Se ela hoje está me dizendo que é uma menina trans, vou amar e acolher. E se daqui a dez anos ela disser: “Mãe, mudei, vi que não era bem assim”, então vou acolher, amar e respeitar da mesma forma.
Quando ela nos contou que era uma menina trans, meus pais estavam viajando. Esperei eles voltarem e, sem a minha filha, fui falar com eles. Pela educação que recebi, imaginei que seriam compreensivos, mas não podia prever como reagiriam ao ver a neta com roupas de menina. A conversa foi muito melhor do que imaginei. Minha mãe disse que tinha muito orgulho da neta e que a amaria ainda mais “porque ela vai precisar de mais amor ainda”.
Sempre prezamos por um ambiente acolhedor, em casa e na escola. Entendemos que os educadores deveriam formar cidadãos capazes de construir um mundo mais justo. Então, você pode imaginar o que senti no dia que expulsaram a minha filha.
A relação com a escola já não ia tão bem. Minha filha começou a fazer a transição no início deste ano. Procuramos a escola e ouvimos que era o primeiro caso ali e que eles caminhariam e aprenderiam conosco. Mas, na prática, não foi bem assim. Eram pequenos os atos de discriminação cotidianos. Apesar de existir uma lei que dá o direito de a minha filha ser chamada pelo nome social, de os documentos estarem assim e uma série de outros direitos que todas as crianças têm, a escola não respeitava. Provas, boletins e avisos vinham com o nome biológico. Descumpriram outro acordo, de que a minha filha usaria o banheiro das meninas. Deixaram-na usar o da coordenação. Minha filha se chateava demais, a gente conversava com a escola e a resposta era sempre a mesma: “Vamos consultar o jurídico”.
A última negativa que tivemos da escola foi a derradeira. Fizemos a carteirinha de estudante com o nome social e levamos para a escola validar. Eles se recusaram. Por telefone, avisaram que teríamos uma reunião com a gerente regional de educação.
"Eram pequenos os atos de discriminação cotidianos. Apesar de existir uma lei que dá o direito de a minha filha ser chamada pelo nome social, de os documentos estarem assim e uma série de outros direitos que todas as crianças têm, a escola não respeitava. Provas, boletins e avisos vinham com o nome biológico."
O que uma mãe pensaria ouvindo isso? Fiquei feliz, imaginando que seríamos acolhidos. Que alguém de uma instância superior nos ouviria com respeito, que a carteirinha seria liberada. No dia da reunião, minha filha tinha prova de matemática. Antes de sair do carro, disse para mim e para o pai que não a queriam lá. Preconceito é crime, eu disse, e que pegaria muito mal para a imagem do Educar Sesc.
A gerente educacional Silvia Conceição Vieira Maia nos esperava sozinha em uma sala. Ela nunca tinha visto a minha filha e ninguém da escola estava lá. Ela foi receptiva, disse que minha filha era uma excelente aluna. Falou que entendia a situação e as nossas queixas, mas que, pelo Educar Sesc fazer parte de um sistema maior – a Fecomercio –, com atuação em todo o país, não havia campo no sistema de informática para o nome social e que não seria possível inserir. Como a escola não tinha como atender a minha filha, ela recomendou que procurássemos outra escola que já estivesse preparada para recebê-la. A própria Silvia admitiu que os envelopes de rematrícula ainda não tinham sido enviados porque minha filha não ia recebê-los e eles queriam evitar que ela ficasse constrangida. Imagina o meu choque? Disse para ela: se você está expulsando ela daqui não existe outro motivo que não a transfobia.
Não existe, infelizmente, uma escola preparada. Quando mencionei a questão legal, ela disse: “Não vamos nem entrar nesse mérito, vamos resolver aqui mesmo.” Meu marido se chateou, alterou o tom de voz e ela pediu educação. Mas não era falta de educação, e sim indignação. Aquela escola era o segundo lar da minha filha. Os amigos de sala que cresceram com ela foram os primeiros a dar força, dizendo que a admiravam por ser forte e corajosa ao assumir quem era e buscar ser feliz. O preconceito não partiu das crianças, mas da instituição.
A gerente, então, deu a reunião por encerrada e pediu que uma funcionária nos acompanhasse até o estacionamento. Ela praticamente me expulsou. Do corredor, avisei que acionaria a Justiça. A escola atropelou a vida da minha filha. Foi um baque terrível. Entrei no carro e comecei a chorar. Nunca me senti tão humilhada. Quando minha filha chegou, contei o que havia passado. Tudo o que ela havia previsto aconteceu. Ela começou a chorar e a pedir desculpas, como se a culpa fosse dela. Liguei na mesma hora para uma advogada, que me orientou a fazer um boletim de ocorrência na Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente. Saí da delegacia para o hospital. Minha pressão estava 18 por 12.
Algumas mães entraram em contato comigo. No dia seguinte, organizamos uma manifestação em frente à escola. Quase cem pessoas participaram.
A escola já recuou, disse, em nota, que a matrícula está garantida. Ontem, a defensora pública perguntou se minha filha quer voltar a estudar lá. Apesar de tudo, ela não soube responder.
Vamos resolver amigavelmente, mas quero respostas para o que ainda não veio à tona. De onde partiu a decisão de expulsar a minha filha? O que aconteceu com os envolvidos? Quero que o corpo docente da escola passe por ações educativas para que outros não sofram como minha filha sofreu. Vou levar essa luta adiante por ela e pelas outras milhares de meninas trans que, com certeza, passam por isso todos os dias, nos mais diversos espaços. As outras escolas têm que tomar como exemplo para que não se repita.
Depoimento colhido por Thais Lazzeri
Foto Marília Camelo