Entrei nas Forças Armadas em 2005 para ser fuzileira naval, porque buscava melhores oportunidades. Morei com minha mãe só até os 14 anos e cresci muito pobre no Estado de Virgínia, nos Estados Unidos. Então, eu precisava de trabalho e de acesso à educação.
Na época, eu ainda era classificado como mulher. Fiz duas missões no Iraque e fui uma das primeiras a participar de uma unidade de infantaria. Em 2009, fui para o Exército fazer um curso de mecânica de helicópteros. Nessa época, comecei a tomar hormônios e fazer a transição médica para o corpo masculino. A partir daí me senti mais em equilíbrio comigo mesmo, mais confortável com meu próprio corpo: era como se eu estivesse no caminho certo.
Na minha experiência como transgênero, nunca houve um momento específico em que tivesse me dado conta de que era de outro gênero ou algo assim. Talvez por ter tido uma criação diferente da dos outros trans. Sou de origem indígena, e a questão dos gêneros é mais fluida na minha cultura. Mas nas Forças Armadas percebi como eles são rígidos nisso e como todos tinham de se encaixar em um padrão. Demorei para fazer a transição porque era muito caro. Todo o processo custou 25 mil dólares (78 mil reais). E é difícil para as pessoas trans conseguirem trabalho, pois há muita discriminação.
No passado, as Forças Armadas tinham uma política para gays e trans chamada ‘Não pergunte, não diga’. Basicamente, o que acontecia era que ninguém falava sobre o assunto. Mas é claro que bastava olhar para mim para entender a situação. Em 2015, comecei a me expor publicamente. Foi quando passei a sofrer muito com o assédio dos meus superiores.
Eles diziam que eu tinha de usar o uniforme de acordo com o meu gênero, e o Exército me considerava mulher. O problema era que a testosterona havia mudado o formato do meu corpo e as roupas não cabiam em mim. Os meus ombros e braços eram tão musculosos que não dava para vestir as blusas. E a roupa, padronizada, não pode ser alterada de acordo com cada indivíduo. Um dia meu supervisor me obrigou a ir à loja do Exército e provar as roupas femininas na frente de todos. Foi a coisa mais constrangedora que já me aconteceu.
"Todo dia, caso alguém usasse o pronome 'ele' para falar comigo, meu superior imediatamente corrigia a pessoa. Dizia algo como: 'Ela! Ela! Ela! Você está falando com uma mulher'"
A minha cadeia de comando me queria fora e começou a pensar em maneiras de me expulsar. Eles procuravam qualquer coisa para me prejudicar. Se me atrasasse um minuto, já tomava uma punição. Todos os dias, caso alguém usasse o pronome "ele" para falar comigo, meu superior imediatamente corrigia a pessoa. Dizia algo como: ‘"Ela! Ela! Ela! Você está falando com uma mulher, você deve que usar o pronome "ela!’. Todos os dias eram assim. Era horrível. Ficou tão insuportável que escrevi ao general da minha unidade para pedir aposentadoria, porque eu não aguentava mais.
Vi muita ignorância entre soldados medíocres. Entre os fuzileiros, você pode até não gostar de negros ou de brancos, mas isso não importa porque todos sabem que na hora do combate essa pessoa vai te dar cobertura. No Exército, a mentalidade é outra.
Eu me aposentei um mês antes que entrasse em vigor, em 2015, a legislação que permitia pessoas trans no Exército. Os Estados Unidos estão mal agora com Trump [que disse pelo Twitter que revogaria a lei]. Meu desejo é sair dos Estados Unidos e ir para algum país da América do Sul — ou para o Alasca. Tenho esperança no futuro, mas acho que, para os transgêneros, dado o clima político, é preciso se preparar para o pior.
Atualmente eu recebo uma aposentadoria, o que paga as minhas contas, e também dou palestras em colégios e universidades. Pensei em seguir carreira política e fiz até um treinamento no Partido Democrata, que tem um programa de incentivo para pessoas LGBTs, onde aprendi a fazer campanha. Mas não quero fazer parte do sistema político.
Depois que mudei meu nome, deixei de revelar qual é o registro de batismo. Assim como não compartilho fotos de antes e depois da transição. Parece que as pessoas ficam obcecadas com as mudanças físicas e esquecem o ser humano. Eu sou o que sou agora.
Depoimento colhido por Cláudio Goldberg Rabin
Foto por Greg Doherty/Getty Images