Comecei a dançar aos oito anos. Quando abriram inscrições para o balé na minha comunidade, minha mãe, Maureny, me levou até lá. Morava no bairro Benfica, na zona norte do Rio, e o balé fazia parte do projeto social “Dançando para não dançar”. Minha mãe sempre se preocupou em me manter ocupada depois da escola para não ficar pelas ruas enquanto ela trabalhava, e isso mudou minha vida. Meu primeiro teste foi de pés no chão. Não tinha sapatilha, não tinha noção do que era tudo aquilo. Sempre fui uma menina que gostava de natação e futebol. Lembro-me da professora mexendo meus braços e pernas para ver se eu era flexível e, pouco tempo depois, avisando minha mãe: “Sua filha passou”.
Depois, dancei na Deborah Colker, na Escola de Dança Maria Olenewa e fiz um estágio no Corpo. Aos 13, decidi levar o balé a sério e me dei conta de que poderia fazer daquilo a minha profissão – não que antes não levasse, mas não via ninguém parecido comigo na aula, logo imaginava que não conseguiria. Uma professora mandou um vídeo para o Dance Theatre Of Harlem, fui convidada para um teste e passei. Aos 18 anos, desembarquei sozinha em Nova York e sem falar uma frase em inglês. Nos primeiros dias, só chorava, falava para minha mãe que queria voltar e ela sempre me respondia: “Aqui no Brasil não tem nada para você, minha filha. Fique aí, aí é o seu lugar”. E eu fui ficando, ficando e já estou aqui há nove anos.
Ao longo da minha carreira, o preconceito sempre existiu, mas de maneira velada. Nunca era verbal. Percebia olhares. Sempre fui a única negra na aula, mas isso não me impediu de chegar aonde estou. No Dance Theatre Of Harlem, me senti acolhida, vi meninas parecidas comigo e me vi nelas. Foi a primeira vez que não senti nenhum preconceito. Aprendi a sentir orgulho de mim. O bailarino fundador da companhia, Arthur Mitchell, criou a ideia de pintarmos as nossas sapatilhas da cor da nossa pele e, hoje, isso tem um significado muito maior para mim. A companhia onde eu danço hoje é carregada de simbolismos e representatividades. Isso é muito importante para as crianças negras. O ato de pintar a sapatilha da cor da minha pele me faz quem eu sou, manter meu cabelo black mostra quem eu sou. Essa atitude é um ponto de referência para que outros negros deixem de tentar se encaixar em uma sociedade padrão.
Quando fiz audição para o DTH, demorou cerca de quatro horas. Eu estava muito nervosa. Não acho que haja qualquer profissão que se assemelhe ao balé – a pressão é fora do normal e você precisa dançar com leveza e maestria. Quando você calça uma sapatilha de bico de gesso, você faz a reconstrução do próprio corpo e isso é maravilhoso.
"Desde que me mudei para Nova York, minha mãe nunca me viu dançar e essa é uma parte triste da minha vida"
Desde que me mudei para Nova York, minha mãe nunca me viu dançar e essa é uma parte triste da minha vida. Logo no início de minha estadia, ela tentou tirar o visto, mas foi negado. Passado algum tempo, tentou novamente e não conseguiu mais uma vez. Na terceira, eu já estava muito desanimada, mas a companhia enviou carta convidando minha mãe para ver o espetáculo, juntamos o pôster exibido em todas as estações de metrô de Nova York, mas, mais uma vez, disseram “não”. Isso foi há uns dois ou três anos.
Minha mãe é empregada doméstica, nascida no Espírito Santo, veio ao Rio para trabalhar e acabou conhecendo meu pai. Em 2010, a patroa dela foi para a Disney e minha mãe a acompanhou. Fui vê-la, passeamos, matamos a saudade, mas ela não me viu dançar. A companhia estava de férias. No passaporte estava especificado que ela só poderia ficar aqui com a empregadora. Logo que ela voltou ao Brasil, me tornei a primeira brasileira em um cartaz da companhia desde 1969. Aquele momento foi glorioso, vi meus pôsteres nas ruas, metrô e ônibus e até vídeos exibidos na Times Square.
Hoje quando me perguntam “qual é o seu sonho?”, digo que é minha mãe me ver dançar. Ela lutou tanto, me deu conselhos, me guiou e seria muito gratificante para ela, seria o reconhecimento dos sacrifícios que fez - já faltou ao trabalho para me levar às aulas, comprou sapatilha e roupas de balé. Foi um investimento para eu ser quem sou. Minha mãe me ver dançar seria o meu maior presente, mas acredito que para ela também. Uma mulher que veio de uma família muito humilde, com 12 irmãos e sem estudo, e teve a coragem de botar a filha de 18 anos em um avião rumo a Nova York.
Até o fim deste ano, tentaremos mais uma vez. Quando vier, será melhor eu pensar que ela não está na plateia, caso contrário, vai ser um chororô sem fim. Vou dar o meu melhor. Lembro-me de um balé que versava sobre amor e perda e eu tinha perdido minha afilhada de 11 anos devido a uma leucemia. Nesse dia, dancei como se ela estivesse comigo ali no palco. Através da dança, eu conseguia um pouco de paz. Em março, dançaremos “O Cisne Negro” com outra companhia e eu fui umas das escolhidas. Trazer minha mãe seria um sonho. A dança para mim é como se fosse o ar que eu respiro. Ainda estou iniciando a minha caminhada, mas percebo que já sou inspiração. “Se ela conseguiu, eu também consigo”, algumas meninas pensam e isso para mim é muito gratificante. Tem dias que você está por cima, tem dias que está por baixo e tem dias que você caminha como todo mundo – minha mãe sempre deixou isso muito claro para mim e para o meu irmão e é assim que quero seguir pensando, sempre com os pés no chão, mas usando sapatilhas.
Depoimento colhido por Rafaela Lara
Foto por Alcir N. da Silva