PRIMEIRA PESSOA

Depois da fama, os ataques aumentaram

Ludmilla, 21, cantora, fala das agressões racistas que sofreu desde a infância

query_builder 23 fev 2017, 20h10

Eu era muito popular na escola. As outras crianças sempre queriam estar perto de mim porque eu inventava várias brincadeiras. Em uma ocasião, quando eu tinha 13 anos, uma mãe foi buscar os dois filhos enquanto eles brincavam comigo de queimada. Ela chamou os dois e disse: “Não quero vocês brincando com essa gente, ela nem é da sua cor, olha para ela”. Fiquei triste e, como era criança, não soube como responder. Foi aí que senti o primeiro golpe do racismo. Foi horrível.

Outro episódio que me marcou foi durante um passeio com a minha mãe em um shopping de Porto Alegre. Ela entrou em uma loja, mas logo saiu xingando, dizendo: “Ah, então porque é preto não pode comprar?”. Tinha duas mulheres na loja falando que ali “não tinha preto” e que aquele não era lugar para ela. Puxei minha mãe e falei para irmos embora. Eu estava começando a ficar famosa, com 16 anos, e ainda não entedia direito o preconceito. Quando acontecia, eu deixava para lá. Achava que racismo era uma coisa normal. Conforme fui crescendo e ganhando maturidade, vi que a parada é muito séria e acontece em todo o lugar.

Depois que fiquei famosa, os ataques aumentaram. No Instagram, um cara me chamou de “macaca” e “nojenta”. Só respondi e o bloqueei – e deixei para lá de novo. Só que ele voltou a me esculhambar, dizendo que eu não tinha que estar no palco cantando e sim comendo banana no zoológico. Doeu. Dá uma sensação de impotência, uma angústia. Minha família toda soube do ataque. Quando essas coisas acontecem, minha avó e minha mãe ficam chorando pelos cantos, dizendo que não é possível que isso não vá parar. Foi aí que falei: “Chega” e denunciei à polícia.

Em outro caso, no fim do ano passado, eu estava no aeroporto de Florianópolis tirando foto com fãs e uma mulher que estava perto falou: “Ai, gente, não fica pedindo para tirar foto com essa macaca, não”. Fomos para a delegacia do aeroporto e prestei queixa. Quando ela viu que a coisa era séria, que podia se dar mal, começou a falar que era minha fã e ainda pediu uma foto comigo, teve essa cara de pau.

"Mais nova, achava que racismo era uma coisa normal"

No caso do Marcão do Povo, que me chamou de “macaca e pobre” em um programa da Record, fiquei incrédula. Pensei: “O que eu fiz para esse homem me xingar, para ele me odiar desse jeito?”. Vi o vídeo várias vezes e entendi que a questão é que sou negra e era pobre e agora consegui conquistar um monte de coisas.

O meio artístico é hostil: é muito difícil ver negros fazendo sucesso. Eu vejo vários negros talentosos, várias negras lindas. Mas no desfile da Victoria’s Secret, você procura, e quase não encontra. Só tem branca ou no máximo uma queimadinha, bronzeada. Por que não tem mais cantoras negras jovens brilhando, cantando para todo mundo, dando entrevista? Dá para contar nos dedos. É difícil ser negro, até para a Beyoncé.

Os racistas acham que estão perdendo espaço, que os negros estão ocupando um lugar que não lhes pertence. Eles pensam que negro tem que estar da cozinha para lá, com a vassoura na mão. Incomoda ainda mais quando a pessoa que faz sucesso é mulher, que até outro dia só podia ser dona de casa.

Alguns já chegaram a me pedir desculpa. Mas eles não têm que vir falar comigo. Se eu não tomasse providências, denunciasse, processasse, ninguém ia pedir desculpas. Essas pessoas não existem mais para mim. Não precisa tocar no meu nome, pedir desculpa, nada disso. Só esquecer que existo e pagar pelo que fez. As minhas denúncias são uma forma de encorajar as pessoas que, como eu no passado, deixam tudo para lá, são chamadas de “macaca” e ignoram. Quem nunca passou por isso acha que é bobeira, que a gente quer aparecer. Nada disso. A gente quer mostrar que o racismo existe para que quem é criança não cresça achando que isso é normal.

Depoimento colhido por Meire Kusumoto
Foto por Felipe Cotrim/VEJA.com