PRIMEIRA PESSOA

Ainda tem gente que me olha torto

Megg Rayara Gomes de Oliveira é primeira travesti negra a se tornar doutora na Universidade Federal do PR

query_builder 16 jun 2017, 11h10

Olhando para trás, fico emocionada ao analisar a minha trajetória. Parece que estou vivendo a vida de outra pessoa. Nasci no interior do Paraná, em Cianorte [ela não revela a idade]. Era uma cidade pequena, de tradição rural. Minha família saiu do interior de Minas Gerais, meus pais nasceram e cresceram na roça. Éramos sete irmãos. Nasci no sítio, mas fui para a cidade ainda pequena. Minha mãe quis preservar aquela tradição do campo, em casa tinha galinha, a gente brincava no quintal. Só fui para escola com uns seis anos de idade.

Na minha cabeça infantil, o que definia o gênero de uma pessoa era o cabelo e a roupa, e eu queria ter cabelo comprido de qualquer jeito. Amarrava uma toalha na cabeça e saía por aí. Minha família não se importava com minha peruca improvisada, eu ia para todos os lugares, brincava na rua. Não havia marcadores de gênero muito fixos, e eu não me sentia desconfortável por tentar expressar minha identidade feminina: brincava de comidinha, de casinha... e também com os meninos.

A encrenca começou quando fui para a escola. Começa aquela divisão de o que é de menino e o que é de menina. E eu ainda era chamada pelo meu nome de batismo [ela não revela seu nome]. Em casa, me chamavam de Kim. Foi uma divisão violenta. Era constrangedor para mim.

Comecei a perceber que não podia mais tentar me expressar porque não havia espaço. Comecei a desenvolver estratégias para conseguir ser eu mesma. No fundo do quintal, havia uns pés de bananeira e lá eu escondia as bonecas que achava na rua. Meus dois irmãos mais novos [ela tem seis irmãos] iam brincar com a gente, usavam panelinha, faziam comidinha, numa cumplicidade legal. Até os meninos da rua tinham cuidado comigo. Só fui perceber isso anos depois.

No ano passado, fui certificar meu nome social e meu irmão mais novo testemunhou a meu favor. Ele narrou coisas das quais eu tinha me esquecido. Foi simbólico ele já ter lá atrás essa leitura de que eu era mais vulnerável. Minha mãe não manifestava apoio publicamente, mas era cuidadosa comigo. Consegui fugir das poucas situações de assédio sexual que sofri graças aos ensinamentos dela. Meu pai era alcoólatra e muito distante da família. Morreu quando eu tinha 11 anos. Minha mãe é quem mantinha a família unida, com seus valores morais e religiosos.

"Minha construção intelectual aconteceu em conjunto com a corporal"

Quando cheguei ao ginásio, as agressões ficaram escancaradas. Na quinta, sexta série, não ia ao banheiro porque tinha medo. Eu era bastante afeminado: negro, pobre e afeminado, era um problema. Só no ensino médio entendi que ter uma boa formação escolar era importante. Eu tinha uma professora de química que me estimulava muito. Como tinha problema de autoestima e comunicação, o desenho era minha forma de expressão.

No primeiro vestibular, sem cursinho, passei em pedagogia, em Maringá. Uma luz se acendeu: eu podia arriscar tentar um curso de Belas Artes. Deixei a pedagogia e fui para Curitiba. A desculpa era estudar, mas eu queria também me construir como pessoa, como um sujeito que pode expressar completamente sua sexualidade.

Tive dificuldade para passar em entrevistas de emprego. Deixava meu cabelo o mais curto possível, usava roupas bem masculinas e tentava gesticular pouco. Nos primeiros anos, levava uma vida dupla. Era masculinizada de dia e, aos fins de semana e à noite, era eu mesma. Depois, entrei na Belas Artes [Escola de Música e Belas Artes do Paraná]. Aos poucos comecei a mudar meu corpo, depilar, tirar sobrancelha, deixar o cabelo crescer. Fui crescendo academicamente e profissionalmente e assumindo quem eu era. Aos 30 anos, comecei a usar hormônios. Minha construção intelectual aconteceu em conjunto com a corporal.

Mas ainda enfrentava resistências. Tentei quatro vezes até entrar no mestrado. Passava na prova escrita, tinha o projeto bem avaliado, mas eram chatos na entrevista oral. Demorou para cair a ficha de que a desqualificação não era da minha pesquisa, mas da minha pessoa. Fiz o mestrado com muita dedicação. Publiquei a tese e participei de vários eventos que abriram a porta para o doutorado. Só alguns professores viam minha pesquisa como militância. Houve vários embates por conta do tema. Mas eu justificava que a pesquisa se cruzava com minha própria existência. Eu trabalhei com a bicha preta mesmo [o título da tese é: “O diabo em forma de gente: (r)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação”]. São termos usados para me desqualificar e hoje advogo a favor da presença delas no setor formal de ensino.

Entrevistei quatro profissionais da educação que se reconhecem como bichas pretas, três do Paraná e um do Rio, que foram dando o tempero que faltava. Na defesa, rompi com a forma conservadora de escrever. Desenvolvi uma “escrita bicha”, como disse uma das pessoas da banca. A tese foi indicada como uma das melhores do ano no prêmio Capes.

Tenho viajado muito para falar da inserção de travestis e negros no ensino. Aquele menino que botava a toalha na cabeça foi ensinado que havia lugares proibidos para ele. E olha onde estou: na academia. Ainda tem gente que me olha torto, mas não é por isso que vou abaixar a cabeça, há outras que se espelham em mim. Sou professora [na própria UFPR] e a primeira travesti negra doutora da Universidade Federal do Paraná.

Depoimento colhido por Mariana Lajolo
Foto por Samira Chami Neves/Sucom/UFPR