PRIMEIRA PESSOA

Riram de mim, mas não desisti

Gabriel Meloni, 18 anos, perdeu o braço e a perna esquerda em um acidente de trem e passou a sentir vergonha de sair de casa. Até descobrir o esporte paralímpico

query_builder 13 abr 2017, 19h30

Era mais uma tarde normal em Cubatão, litoral sul de São Paulo. Tinha apenas 15 anos e estava jogando bola com alguns amigos, esperando o horário de buscar meus primos no colégio. Sempre fui um garoto calmo, não me envolvia em problemas, mas naquele dia fiz algo diferente do que estava acostumado. Para cortar caminho até a escola, resolvi atravessar a linha férrea que atravessa o bairro da Vila Natal subindo em um trem que passava devagar. Mas então a composição começou a acelerar, e, como nunca tinha feito aquilo, não consegui me equilibrar. Tentei segurar em um fio, mas foi pior: levei um choque e fui ao chão. Caí e fui atropelado por 33 composições. No momento da queda, não senti dor alguma, estava consciente. Fui socorrido e, na chegada ao hospital, ainda consegui dizer meu nome, o de meus familiares e onde morava. Durante os procedimentos médicos, fui sedado. Os profissionais disseram à minha família que poderiam “assinar minha certidão de óbito”, que eu tinha menos de 5% de chances de sobrevivência. Depois de muita luta e oração, acordei no leito. Estava sem meu braço e perna esquerdos. Passei um mês e seis dias internado.

Minha vida teve de ser completamente reorganizada depois do acidente. No início, não saía de casa, tinha vergonha de que me olhassem nas ruas e pensei em desistir de tudo. Decidi que não iria mais à escola, já que costumava ir a pé, porque as pessoas realmente eram preconceituosas. Muitos me olhavam, outros riam na minha cara. Morava em um bairro pequeno, com meus avós, também portadores de deficiência física (meu avô tem um problema na perna, e minha avó, na coluna) e era conhecido na região. Depois do acidente, aqueles que sabiam da minha história passaram a me tratar como se eu fosse um ser inferior, mas resolvi não desistir.

Encontrei pessoas com casos semelhantes ao meu em redes sociais e me inspirei. Minha família não tinha experiência com um grau tão severo de deficiência, mas aos poucos fomos nos adaptando. Assim, descobri o esporte.

"Antes do acidente, não fazia atividades físicas com frequência. Depois, isso se tornou essencial na minha vida"

Pela internet, minha família conheceu a história do nadador Talisson Glock, bem antes da Paralimpíada do Rio – Talisson foi medalha de prata no revezamento 4 x 50 m livre (20 pontos) e bronze nos 200 m medley categoria SM6. Coincidentemente, ele tem exatamente a mesma deficiência que eu, amputação dos membros do lado esquerdo, e também a sofreu em um acidente de trem. A semelhança dos casos me chamou atenção, e eu senti uma motivação ainda maior para começar a praticar o esporte. Antes do acidente, não fazia atividades físicas com frequência. Com o tempo, isso se tornou extremamente essencial na minha vida. Ao entrar para a natação pude conhecer pessoas com deficiências maiores e menores que a minha, o que me levou a refletir. Pensei: “Se ele está em uma cadeira de rodas, só mexe do pescoço para cima, por que eu vou reclamar, já que posso colocar uma prótese e andar?”

A prótese, aliás, foi uma grande conquista em minha vida. Passei por três cirurgias, que atrasaram todo o processo, até poder receber a perna mecânica, essencial para minha locomoção. Para recebê-la, viajei a Sorocaba, interior de São Paulo, no início de 2016, onde me encontrei com Talisson, o responsável pela entrega. Ele me incentivou a seguir lutando no esporte e previu que a natação me reservava um grande futuro. Hoje, aos 18 anos, estou buscando essa realização. Eu e minha família nos mudamos para Praia Grande, no litoral sul de São Paulo, em busca de uma estrutura melhor. Frequento o 3º ano do ensino médio e treino diariamente no quartel do Corpo de Bombeiros, de duas a três horas por dia.

Recebi a classificação para o Parapan-Americano de Jovens depois de competir na Paralimpíada Escolar, e agora meu foco é a seleção principal. Meu sonho é realizar uma das coisas que Talisson me desejou: que um dia nadássemos lado a lado, representando o Brasil. Tenho muita motivação para estar nos Jogos de Tóquio, em 2020. Afinal, não nado apenas por mim. Quando entro na piscina, levo tudo comigo. Carrego minha trajetória, minha família, Deus e todos aqueles me ajudaram quando mais precisei, quando pensei que não teria mais chances na vida. Se antes eu era um adolescente imaturo, impulsivo, hoje sou um homem que planeja cada passo antes de tomar uma decisão. O acidente me trouxe transformação não apenas do corpo, mas também da mente, e para muito melhor.

Depoimento colhido por Andressa Oliveira
Foto por Alexandre Urch/MPIX/CPB