PRIMEIRA PESSOA

Saí de uma ditadura para cair em outra

O iraniano Behrouz Boochani, 35, vive há seis anos num centro de refugiados próximo da Austrália e escreveu um livro sobre isso por mensagens de texto

query_builder 20 de fevereiro 2019, 14h30

Deixei o Irã em 2013 porque não me sentia seguro. Sou jornalista e escritor e, na época, trabalhava numa revista chamada Werya, cuja missão era manter viva a cultura curda – que é a minha. Meu povo, nativo daquela região, vive num território que não pertence a nós e que está dividido entre Turquia, Iraque, Irã, Síria e Armênia. Eu vivia em Ilam, uma cidade de maioria curda em terreno iraniano, quase na fronteira com o Iraque. O Irã vinha tentado enfraquecer nossa luta por autonomia apagando nossa cultura, por isso a Werya era vista como subversiva. Quando agentes do governo atacaram nosso escritório e prenderam alguns colegas, fugi. Escapei rumo à Austrália, mas nunca cheguei ao meu destino.

Tenho vivido na ilha de Manus, território de Papua Nova Guiné, desde que meu barco, cheio de refugiados, foi interceptado após quase naufragar. É para cá e para outra ilha, chamada Nauru, que o governo australiano manda as pessoas que tentam entrar no país pelo mar, para esperar até que sua situação seja legalizada – ou, pelo menos, é o que prometem. Estou aqui há quase seis anos.

Como eu, estão outras centenas de pessoas sem lar. A promessa de asilo, como descobrimos com o tempo, se traduz quase sempre em uma frase: ou aceitamos voltar aos nossos países de origem, ou ficaremos em Manus indefinidamente. Um acordo de reassentamento foi firmado com os Estados Unidos e há casos isolados em outros países, mas absolutamente ninguém foi aceito na Austrália até hoje. Mulheres e famílias têm mais chances de serem realocadas. Homens iranianos, nem tanto.

A ironia é que saí de uma ditadura, na minha terra-natal, para cair em outra. Essa é uma palavra que ninguém associa à Austrália, mas a verdade é que o governo australiano é uma ditadura para os refugiados. E talvez seja até pior do que isso: um governo fascista, porque eles estão nos mantendo aqui nesta ilha remota há anos, sem passaporte e sem liberdade, sem termos cometido crime algum. Até agora, doze pessoas morreram – a maioria por suicídio ou vítimas da precariedade do atendimento médico local – e muitas outras desenvolveram problemas mentais e físicos. As condições são desumanas.

Desde que cheguei a Manus, tenho documentado essa história de todas as formas que posso. Uma delas é o Twitter, que tem sido como uma janela para me comunicar com o mundo. Mas minha perspectiva é muito particular: tenho observado a Austrália e o resto do mundo pelos últimos seis anos de dentro desta ilha remota, a partir de uma tela do tamanho da minha mão.

"A promessa de asilo, como descobrimos com o tempo, se traduz quase sempre em uma frase: ou aceitamos voltar aos nossos países de origem, ou ficaremos em Manus indefinidamente"

Até essa comunicação limitada, aliás, tem sido um desafio. Durante três anos, nós não tivemos o direito de portar celulares e tínhamos que consegui-los de formas ilegais. Eu mesmo tive dois celulares confiscados pelos guardas e foi com um deles que comecei a enviar, por mensagens, os trechos de um livro em que narro o cotidiano deste lugar. No Friend But the Mountains: Writing from Manus Prison foi publicado na Austrália em julho de 2018 e, no final de janeiro de 2019, ganhou o maior prêmio literário do país (o Victoria Premier’s Literary Award). Um prêmio que eu sequer pude receber pessoalmente.

Depois daqueles três anos, a Suprema Corte da Papua Nova Guiné julgou ilegal nos tratar como prisioneiros e ganhamos o direito de nos comunicarmos com nossas famílias, advogados e amigos. É assim que eu sei que meus parentes, lá no Irã, estão seguros e felizes. Pouco depois, fomos transferidos para outro alojamento na capital da ilha, mas isso só nos deixou mais apreensivos, pois significava que não haviam encontrado uma solução e não estavam dispostos a ceder. Talvez eles não entendam que, mesmo se nos colocassem num hotel cinco estrelas, ainda nos sentiríamos torturados, pois estamos separados de nossas famílias, perdendo sonhos e oportunidades, num limbo.

Hoje, escrevo legalmente de meu celular, mas continuo a denunciar. Não é como se pudesse escolher entre escrever ou não. Sou um escritor, isso me ajuda a sobreviver, faz com que eu me sinta livre. É claro que, se eu fosse um homem livre de verdade, teria escrito um livro diferente, mas, aqui, minhas inspirações me levaram a essa obra, que me deu a chance de desafiar as estruturas políticas.

Depois de tanto tempo, vejo que essas estruturas finalmente estão começando a titubear. Em 12 de fevereiro, tivemos uma grande vitória: o Congresso australiano aprovou uma lei facilitando o transporte de refugiados para tratamento médico no continente, contrariando o próprio governo que considera a medida um “risco para as fronteiras”. Para nós, é uma conquista histórica.

Apesar do otimismo, não consigo pensar no futuro. Não posso imaginar a vida fora daqui, onde gostaria de ir, o que gostaria de fazer primeiro… Só consigo pensar que quero sair desta ilha. Sair é tudo o que me importa agora.

Depoimento dado a Juliana Varella
Foto: Youtube/Reprodução