PRIMEIRA PESSOA

Eu não era comunista. Ia morrer

Habib Mohebi, afegão que fugiu do país durante a invasão soviética e hoje, radicado nos EUA, cria empregos em sua terra natal

query_builder 7 out 2016, 20h45

Em 1980, minha vida tinha dois caminhos: ou eu seria morto ou preso até a morte, o que daria na mesma. Foi a época da invasão do Afeganistão pela União Soviética. Nesse período, os donos do poder diziam “quem não está do nosso lado, está contra nós”, um argumento que bastava para mandar as pessoas para a cadeia. Eu não estava em nenhum partido político, não gostava do Partido Comunista nem dos invasores – e como minhas opções eram ser morto ou preso, decidi sair do Afeganistão. Eu tinha 22 anos.

Até a invasão, em 1979, eu trabalhava no setor administrativo do aeroporto de Cabul. Eu não quis estudar em universidades porque os comunistas estavam lá. Em todos os ministérios e órgãos públicos, se descobrissem que alguém era contra o governo comunista, a pessoa era mandada para a prisão. No Ministério do Interior, todo mês era exibida uma lista com os nomes de milhares de pessoas que o governo havia matado. Eu mesmo não queria nem chegar perto do ministério.

Muitos amigos meus já haviam sido presos. Quando pegaram dois deles, íntimos, pensei: "vou ser o próximo". Deixei minha casa no dia seguinte. Era certo que o governo ia conseguir meu nome, que ia chegar até mim.

Fiquei uma semana na casa de amigos, escondido junto com meu irmão. Durante esse tempo, nós planejamos a viagem. Deixamos a capital e fomos para Kandahar, no sul. Levei só algum dinheiro. De lá fomos para o Paquistão, depois Irã e Áustria. Eu planejava ir para a Europa, mas depois decidi ir para os Estados Unidos porque havia mais oportunidades.

Aprendi o oficio de alfaiate no Irã, onde fiquei 18 meses, e na Áustria, onde permaneci também por um ano e meio, trabalhei em uma tecelagem. Quando cheguei aos Estados Unidos, em 1984, trabalhei novamente em tecelagem, durante dois anos. Trabalhar nesse país foi muito bom para mim. Comecei ganhando 3,15 dólares por hora, acho que era o salário mínimo à época. Como tínhamos uma boa produção, seis meses depois, eu estava ganhando 6,50 dólares. Mais seis meses e eu saí para outra companhia para ganhar 10 dólares, o que era um bom salário na época.

Eu me casei em 1999, na Índia, com uma mulher afegã. Minha mãe, minha irmã e meu irmão estavam lá. Voltei para os Estados Unidos, dei entrada nos papéis de imigração dela e, oito meses depois, ela estava aqui comigo. Hoje temos três filhas e um filho.

"Até hoje os helicópteros me incomodam. O som de suas hélices e de seus motores me lembra o barulho que eu ouvia pela manhã, quando eles iam atirar nas pessoas"

Eu já tinha me tornado um empreendedor – porque, se você não tiver seu próprio negócio, você não faz fortuna. Em 1986, abri meu próprio negócio de tecelagem. Depois, em 2002, criei uma empresa de logística que atua na parte de contratos com o governo americano. Meu sócio já era meu cliente na alfaiataria havia dez anos. Ele trazia seus ternos para ajustar, e depois passou a comprar alguns dos nossos. Ficamos próximos e nos tornamos amigos.

Aproveitei que alguns amigos afegãos que vivem nos Estados Unidos haviam me dado contatos de empresas de construção no Afeganistão e abri uma empresa que faz mineração de esmeraldas. Eu tinha amigos que eram do Vale do Panjshir, no norte do país, e eles tinham minas lá. Eu já alimentava o desejo de investir no Afeganistão desde quando os talibãs foram expulsos do país, em 2002. Imaginei, naquele tempo, que podia ser parte da reconstrução do país. Não era só negócio: era minha terra natal, afinal.

As condições de trabalho nas minas eram ruins. Os mineiros não tinham ferramentas necessárias. Usavam dinamite, que danifica a pedra. Depois, na fase de lapidação, mandavam o material para a Índia, para locais que não eram muito bons, o que fazia as pedras perderem valor. Com o tempo, trouxemos a lapidação para os EUA.

Hoje, felizmente, o trabalho melhorou muito. Ainda moro nos Estados Unidos, mas, nossa empresa ajuda a manter empregos no Afeganistão, o trabalho de pessoas que extraem uma riqueza local e fazem isso com a certificação de origem que conseguimos. Eu não diria que sou rico para os padrões americanos, mas enquanto eu conseguir ter uma vida decente, é o suficiente.

Vou ficar nos Estados Unidos pelo resto da minha vida, mas posso ir ao Afeganistão e voltar quando eu quiser. Minha família ainda está lá. Quando volto, fico na mesma casa em que eu cresci, não preciso ficar em hotel.

Dos dias da minha saída do Afeganistão, não quero nem lembrar. Quando vejo helicópteros, quando ouço o som deles, me incomodo. Não importa que sejam helicópteros civis: o som de suas hélices e seus motores me lembra o barulho que eu ouvia pela manhã, quando os helicópteros iam atirar nas pessoas.

Depoimento colhido por Felipe Machado