Desde a gravidez eu já sabia que a Ester (nome fictício) viria especial porque ela não se mexia na minha barriga. Aos 2 anos e meio, ela foi diagnosticada com o transtorno do espectro autista e, desde então, eu comecei a viver para ela. Às vezes eu me pegava sonhando. Será que ela vai casar? Vai ter filhos? Será que eu vou ver a minha filha se formar no pré? Eu vi tudo isso. E chorei muito.
Ester não falava, não olhava nos olhos de ninguém, não respondia quando eu chamava. Às vezes, era como se ela tivesse uma crise de pânico: perdia o controle de si própria e, quando chegava ao ápice, tinha crise convulsiva. Já vi a minha filha batendo a cabeça tão forte na parede que eu não sabia o que poderia acontecer - ela não tinha sensibilidade a dor e frio.
Estava lendo sobre epilepsia e esbarrei com o tratamento com canabidiol. Estudava apenas por curiosidade, mas tive um ‘start’: será que por trás de todos os tabus que a gente escuta sobre a maconha tem algo a mais que não é falado? Li também sobre pais que ganharam na Justiça o direito de cultivar a planta em casa e tive um fundo esperança. Eu fui atrás, soube que havia livros fora do Brasil aos quais a gente não tinha acesso. Livros caros.
Um dia, as crises da Ester começaram a ficar tão fortes que um médico olhou para mim e disse: “Olha, daqui a pouco você não vai conseguir segurar a sua filha em um abraço, você vai precisar comprar uma camisa de força”. Sugeriram a internação, remédios para que eu a dopasse. São coisas que eu abomino. Foi aí que decidi cultivar maconha.
Existe um movimento brasileiro de cientistas e médicos que trabalham com a maconha, mas todo mundo tem medo da criminalização. No meu caso, eu vi o sofrimento da minha filha. Poucas pessoas sabiam que eu cultivava a planta na minha casa. Cometi um crime para salvar a vida da minha filha. A minha família, tradicional, não aceitou a decisão do cultivo. O pai dela me ajudou com vários artigos da Unicamp aos quais eu não tinha acesso.
Antes do tratamento, ela frequentava a creche, mas ninguém dava conta de cuidar dela. Quando eu comecei a fazer o tratamento com a maconha, eu não contei para a escola. Mas ela teve melhoras significativas. As professoras queriam saber o que eu estava lhe dando. Elas falavam que não havia remédio que fizesse isso e queriam saber o que era.
Mesmo com a melhora da minha filha, eu tive muito medo. Moro perto de uma base da Polícia Militar. Se passasse uma viatura na rua, eu parava e respirava fundo. Comecei o cultivo em 2016. Demora seis meses para colher. Nesse tempo, ficava apreensiva. Passei 2017 inteiro com a medicação e, depois, comecei um novo cultivo.
Por causa de uma vingança pessoal, policiais bateram na minha porta. Um cara foi até a delegacia de entorpecentes com a foto da minha casa, das minhas plantas, dando a entender que eu era traficante e que me escondia atrás da minha filha. Ele me denunciou. Comecei a ser tratada como se eu fosse ligada ao tráfico até no meu trabalho. Mas eu só estava tentando achar um jeito de melhorar a saúde da minha menina. Nunca fui uma traficante.
Quando veio a denúncia, pensei em dar um passo para trás. Pensei em mudar de cidade. Todas as vezes que eu pensei em me esconder e continuar na ilegalidade, eu vi algo que me fez continuar. Um dia, fiquei sabendo de o caso de uma colega que fazia o uso do canabidiol na filha e a menina precisou dar entrada no hospital. Quando a mãe falou sobre o tratamento, os médicos não aceitaram e expulsaram a mãe de lá. No fim, a criança morreu sozinha.
A saúde da minha filha é o meu maior tesouro, e eu não deixaria ninguém tirar isso de mim. Com as crises antes do tratamento, eu passava dias sem dormir. Ainda demorei um tempo para assimilar e conseguir pegar no sono. Eu tinha medo, sabe? De possíveis surtos dela. Do cultivo ilegal no meu jardim. A minha família passou a me apoiar graças aos resultados que percebiam nela. Eles não concordaram, mas viam a minha filha bem e começaram a aceitar.
"Existe um movimento de cientistas e médicos que trabalham com a maconha, mas todo mundo tem medo da criminalização. Poucas pessoas sabiam que eu cultivava a planta em casa. Cometi um crime para salvar a vida da minha filha. A minha família, tradicional, não aceitou a decisão do cultivo."
Ela começou a ser alfabetizada. Logo, ela vai estar sentadinha lendo um livro em voz alta para mim. Ester ganhou muita coisa depois do tratamento: não teve mais crises convulsivas, as crises de violência diminuíram muito. Antes, eu não conseguia dar banho e lavar o cabelo da minha filha. Eu não podia pentear o cabelo dela. Hoje, eu consigo ver a diferença dela em relação aos outros amiguinhos que também têm o transtorno do espectro autista. Ela é muito carinhosa, abraça, beija. Ela ainda não sabe brincar, mas gosta de estar perto. Ela tem a chance de aprender.
Num dia desses ela olhou para mim e falou: “Mamãe, eu tenho um problema”. O problema dela era que queria falar ‘oi’ para outras meninas, mas elas não queriam responder porque diziam que a minha filha era estranha. Ela começou a chorar dizendo que não era estranha. O diferente nunca é aceito.
Para conseguir a autorização do Tribunal de Justiça de São Paulo para cultivar a planta, precisei de várias pessoas. Dos pesquisadores que me auxiliaram e correram riscos comigo. De quem me ajudou, mesmo sabendo que eu respondia por tráfico. Eu peitei muita coisa da sociedade por causa da minha filha e hoje eu tenho a autorização. Quando ia ao tribunal, eles me colocavam ao lado de traficantes, como se eu fosse um. Eu não sou.
Ester já está revelando alguns sonhos. Um dia ela disse que queria ser bailarina. Levei-a na loja, comprei uma roupinha de balé e fomos até uma escola de dança. Não deu certo. Então, ela fica dançando aqui em casa. Aquilo para ela já está ótimo. A gente brincou de médico. Conseguimos desenvolver um lado lúdico nela. Tudo isso foi possível por causa do tratamento com a maconha que eu faço com a minha filha. A saúde dela valia muito mais a pena do que qualquer risco que eu poderia correr.
Depoimento colhido por Giovanna Romano
Foto: Arquivo pessoal