PRIMEIRA PESSOA

Minha cabeça ficou a um palmo da roda do carro

Arrastada por cerca de 100 metros por um carro enquanto vendia balões em Taguatinga (DF), Marina Izidoro de Morais, de 63 anos, não sente raiva do motorista

query_builder 20 de junho 2019, 17h00

Nasci no interior de São Paulo, na cidade de Vera Cruz, em 1955. Fui criada na roça, trabalhando em um cafezal, e estudei até a quarta série. Minha infância foi maravilhosa e, mesmo não podendo ter tudo, nunca passei fome. Mudei-me para Brasília vinte e sete anos depois e tive um filho. Fixei-me definitivamente na capital em 1991. Minha profissão sempre foi empregada doméstica — comecei a fazer isso aos 20 anos, mais ou menos. Fui babá, trabalhei e criei o meu filho em casa de família. Há quatro anos e meio, decidi sair do meu trabalho fixo e trabalhar como diarista e passadeira. Por causa da idade, não consigo mais fazer faxina pesada.

Eu trabalho em várias casas, mas tenho a minha freguesia fixa. Gosto muito de passar roupa e passo muito bem, principalmente camisa social. Minha vida é sofrida, mas eu sou feliz. Nunca fui casada com o pai do meu filho nem com ninguém. Com 63 anos, eu trabalho, pago o meu aluguel e corro atrás de outras coisas para que não falte nada para mim e para o meu menino, porque ele está desempregado. Foi para completar a renda que eu decidi vender balão na rua. — ganho 30% de comissão a cada venda. Costumo fazer isso aos fins de semana.

A gente sempre sai de casa e não sabe se volta, né? Foi assim no último fim de semana. Fui vender os balões em frente a um colégio particular, onde estava acontecendo uma festa junina. Cheguei lá às 10 horas da manhã do sábado e pretendia ficar o dia todo. Lá pelas 20 horas, um casal parou o carro na minha frente e perguntou o preço do balão. Respondi que era 15 reais e o motorista pediu um desconto. Fiz por 10 reais e, mesmo assim, ele falou que estava caro e que queria comprar três balões por 20 reais. Eu não podia fazer mais barato porque a mercadoria não era minha e, então, ele concordou em levar os três por 10 reais cada um.

Os balões ficam amarrados no meu braço para não voarem. Quando eu me abaixei para desamarrá-los, a mulher puxou o cordão para dentro do carro, fechou o vidro e saiu derrapando no asfalto por mais de 100 metros. Os balões ainda estavam amarrados a mim. A minha cabeça ficou a um palmo da roda do carro. Eu só via o chão e pensei que ia morrer. É uma cena que nunca vou esquecer. Naquele momento, eu vi a morte. Gritei por socorro, gritei para que eles parassem o carro. Depois de ter me arrastado, o motorista parou o carro, abriu o vidro e o balão saiu. Eu caí no chão, toda machucada, e ele fugiu. O casal sabia o que tinha acontecido. Quem ia estar do lado do passageiro, com o balão dentro e não ia ver a corda levando uma pessoa?

"Eu nunca esperei que algo do tipo fosse acontecer na minha vida. Foi horrível. É uma coisa que eu nunca vou esquecer porque eu passo por aquela rua quase todo dia de ônibus a caminho das casas em que trabalho como diarista."

Algumas pessoas perceberam que eu estava sendo arrastada e seguiram o carro. As testemunhas ligaram para o Samu e para a polícia. Eu pedi à emergência que ligasse para a minha vizinha e ela contou o ocorrido para o meu filho. Ele ficou arrasado. Eu nunca esperei que algo do tipo fosse acontecer na minha vida. Foi horrível. É uma coisa que eu nunca vou esquecer porque eu passo por aquela rua quase todo dia de ônibus a caminho das casas em que trabalho como diarista.

Fui levada para o hospital e não deu nada! Eu fiz raio-X, entrei em um tubo, fiz tomografia da cabeça. Não tive fraturas. Foi um milagre. Fiquei com alguns ferimentos feios, principalmente na perna, que está doendo muito. O meu rosto está bem machucado também. Mas o que importa é que estou viva.

No domingo de manhã, caiu a ficha. Quando eu lembrava, chorava sem parar. Por enquanto, vou parar de vender os balões, mas acho que depois do trauma eu vou voltar. Sou uma vendedora agradável e as pessoas gostam de mim. Eu amo brincar com as crianças e conhecer gente diferente. Vai demorar um pouco, mas eu vou continuar firme e forte. A gente não pode parar, a vida continua.

Fui procurado por uma pessoa que ficou sabendo do que aconteceu e organizou uma vaquinha para me ajudar. Já arrecadamos quase 70 000 reais. Você já pensou? Eu ainda não sei o que eu vou fazer com esse valor, mas não vou ficar em casa nem deixar de passar a roupa das minhas clientes. Eu gosto de fazer o que faço e sou muito agradecida a todas as pessoas que estão me ajudando. Que Deus dê muita saúde a todos. Eu vou continuar trabalhando, juntar o meu dinheiro e me aposentar no ano que vem. Depois disso, quero sair de Brasília e voltar para o interior de São Paulo.

No depoimento para a polícia o motorista disse que queria fazer uma “brincadeira”. Essa brincadeira vai sair caro. O carro dele está na perícia e o laudo do IML deve estar pronto na semana que vem. As minhas testemunhas vão depor também. Eu só quero justiça. Eu também gostaria que o motorista soubesse que eu não tenho raiva dele, só peço que não faça isso com mais ninguém.

Depoimento a Giovanna Romano
Foto: JP Rodrigues/Metrópoles