PRIMEIRA PESSOA

Ele tinha uma feição de ódio, um olhar sanguinário

Rhyllary de Sousa, de 15 anos, lutou contra um dos assassinos para escapar da morte no massacre de Suzano

query_builder 19 de março de 2019, 20h00

Me chamo Rhyllary Barbosa de Sousa, tenho 15 anos e estudo no colégio mais conhecido do país desde a última semana, o Raul Brasil, em Suzano (SP). Eu poderia facilmente ter sido uma das dez pessoas mortas naquela barbárie, mas graças a Deus e a um golpe do destino, além das minhas técnicas de artes marciais, consegui escapar. Mal sei como explicar como tudo aconteceu. Eu estava comendo um lanche com a minha amiga no intervalo e, do nada, comecei a ouvir tiros, vi toda aquela cena. De repente estávamos diante de dois assassinos, ficamos sem reação, sem palavras. Revi o vídeo da câmera de segurança diversas vezes. E um segundo antes de cruzarmos, o Luiz Henrique Castro havia deixado seu machado no chão. Creio que alguma coisa o havia incomodado, talvez algo na bota, uma faca ou algo assim. Quando ele se abaixou para arrumar o calçado, foi quando apareci correndo. Só que ele não pensou em pegar a arma ao lado dele, sua primeira reação foi a de me segurar e me dar socos, para não me deixar fugir. Foi algo muito automático. Quando me vi naquela situação, de repente eu já estava aplicando os movimentos que aprendi nas aulas de jiu-jitsu, mantendo a minha base e tentando me esquivar. Foi tudo muito rápido, durou cerca de cinco segundos, mas me lembro daquele olhar. Ele não parecia assustado, estava com uma feição de muito ódio, muita raiva, um olhar sanguinário.

Tenho uma fé muito forte em Deus. Nada ali aconteceu por acaso. O assassino não contava com a minha chegada e a de outros alunos ali. Foi graças a meus amigos que consegui me soltar, porque isso tirou a atenção dele. Aquele momento teve muito a ver com a minha personalidade, porque sempre tive em mente que somos mais capazes do que imaginamos, sempre há como sair de uma situação difícil. Aprendi em dois anos no jiu-jitsu a não desistir mesmo que nossa garganta feche. Naquele momento, ela fechou. Mas minha mente estava treinada. Cheguei a ver o outro assassino a poucos metros porque estava bem perto da diretoria. O vi tirando o casaco, colocando a máscara, atirando nas pessoas e indo em direção a outros alunos. Ele atirava aleatoriamente, sem nenhuma técnica. Mas depois soube que ele poupou uma professora que lhe deu aula e de quem gostava muito. Ele olhou para ela e desistiu de atirar.

"Revi os vídeos e aí me dei conta da real gravidade da situação, a ficha caiu. Eu acho que os dois atiradores poderiam ter algum tipo de distúrbio mental ou psicológico doentio, pela frieza que tiveram na hora de matar algumas pessoas"

Tudo isso foi uma decepção muito grande, porque o colégio tinha um ambiente no qual nos sentíamos seguros. Os dias seguintes foram bem difíceis para mim, quando comecei a assimilar tudo. Revi os vídeos e aí me dei conta da real gravidade da situação, a ficha caiu. Eu acho que os dois atiradores poderiam ter algum tipo de distúrbio mental ou psicológico doentio, pela frieza que tiveram na hora de matar algumas pessoas. Acho que o atirador, Guilherme Taucci Monteiro, veio de uma família desestruturada, era sozinho. Tenho a sorte de ter uma família presente, moro com meu pais, uma prima e minha irmã de nove anos. E ainda tenho outros dois irmãos. É como dizem: mente vazia é a oficina do diabo. Eles devem ter desistido da vida, de tudo. Não há uma explicação lógica para o que fizeram. Eles jamais poderiam ter conseguido armas, até porque não tinham noção nenhuma de como manuseá-las, muito menos da dimensão do estrago que poderiam causar. A segurança da escola deveria ser reforçada. Não tenho uma opinião formada sobre a liberação do porte de armas, mas sei que pode ter dois resultados: ou a segurança aumenta, ou a guerra aumenta. Se a guerra aumentar, estaremos todos perdidos.

O jiu-jitsu me ajudou muito naquela situação e não acredito nessa coisa da mulher delicada e vulnerável, que só pode fazer ballet, isso não existe mais. A mulher precisa saber se defender, porque a maldade do mundo não afeta só homes, muitas vezes é direcionada às mulheres. E a luta não tira a delicadeza nem a feminilidade de ninguém, mas pode ajudar em várias situações. No futuro, pretendo fazer faculdade de direito. Estava um pouco desanimada sobre esse assunto, mas recebi apoio e é isso mesmo que quero fazer. Mas também penso em competir profissionalmente e fazer faculdade de educação física para dar aulas de jiu-jitsu. Nesta semana retornei ao colégio e não penso em sair de lá, apesar de saber que nunca esquecerei aquelas cenas. A ajuda de psicólogos tem sido importantíssima, pois consegui falar as coisas sem medo. O clima estava muito pesado ainda, mas as atividades propostas nesta semana são essenciais, precisamos relaxar nossas mentes um pouco e não ficar remoendo tudo o que aconteceu. E apesar de ter perdido pessoas queridas, como o Kaio Lucas e o Caio Oliveira, também me sinto aliviada pelas pessoas que se salvaram. Temos de seguir em frente.

Depoimento dado a Luiz Felipe Castro
Foto: Heitor Feitosa