PRIMEIRA PESSOA

Um gesto de amor comove as pessoas

Há dez anos, José Carlos Quintino, 45, doa pães para quem não pode comprar

query_builder 22 de março de 2019, 21h00

Nunca ajudei ninguém pensando em fama. Desde que abri minha padaria em Pirajuí, no interior do Estado de São Paulo, dou pães caseiros para quem não pode comprar. Em dez anos, com todas as dificuldades, nunca neguei comida para quem tem fome. No começo deste ano, um freguês tirou foto do nosso cesto de pães para doação e colocou nas redes sociais. Nossa vida mudou.

A imagem chegou até o Padre Fábio de Melo, que tem milhares de seguidores. Ele publicou a foto no Instagram dizendo que se sentiu emocionado e até chorou com nossa solidariedade. Sou evangélico há quatro anos, mas nosso Deus é o mesmo, e é importante que o mundo não se esqueça disso. A foto foi curtida tantas vezes que chegou até os jornais. Dei entrevistas até para a televisão.

Um gesto de amor comove as pessoas. Nosso movimento também aumentou, mas as doações subiram ainda mais. Desde a postagem do padre nas redes, as doações saltaram de 80 por dia para até 500. Posso até deixar de pagar algum boleto de cobrança, mas pão para quem precisa não faltará. Muita gente veio agradecer, conhecer “o português” que ajuda os outros. E teve gente que veio para ver se o cesto existia mesmo.

É curioso porque sempre demos pães, mas agora todo mundo que compra aqui sabe que está ajudando a comprar farinha para manter o cesto sempre cheio de pãozinho fresco. E o pão é fresco: metade de toda fornada vai para o balcão e metade para doação.

As pessoas em situação de rua tinham vergonha de pedir e batiam na porta dos fundos da padaria. À noite, levo pães para um asilo. No dia 19 de janeiro, um sábado, uma pessoa veio buscar pãezinhos enquanto tomava café com uma pastora da minha igreja. Ela viu a pessoa se aproximar com constrangimento, cochichar baixinho e pegar o saquinho lotado de pães. ‘Por que você não coloca em um cesto, assim cada um se serve?’, ela perguntou. Nunca tinha pensado nisso. No outro dia, montamos.

"Se na sua mesa tem pão, se você faz um churrasco ou uma macarronada no fim de semana, já se perguntou se na sua vila alguém não tem o que comer?"

Trabalho com minha filha, duas confeiteiras e dois padeiros. Minha filha ajudou a organizar o cesto. Colocamos luvas, pegador e saquinhos ao lado da caixa dos pães, e cobrimos com um pano para mosquito não parar. Foi ela quem escolheu a frase que escrevemos em uma cartolina branca: “Para você que hoje não tem condições de comprar o seu pão de cada dia, pode se servir à vontade. Tenha um excelente dia. Jesus te ama”.

Já enfrentei situações difíceis, mas não sei o que é passar por privações, ver um filho passar fome. Nos últimos anos, perdi um caminhão - um funcionário capotou -, uma carreta e fiquei com muitas dívidas. Ainda hoje não me recuperei. Perdi o crédito que tinha com uma empresa fornecedora de farinha da região do Grande ABC porque não tinha como buscar. Mas nunca quem pediu saiu sem um pãozinho. Essa foi a educação que eu recebi. Se na sua mesa tem pão, se você faz um churrasco ou uma macarronada no fim de semana, já se perguntou se na sua vila alguém não tem o que comer?

Algumas pessoas têm uma ideia errada que essa os mais humildes abusam da ajuda, que vão pedir mais, que não agradecem, que pegam mais do que precisam. Teve um amigo meu que me chamou de louco por dar “pão para pobre”. Disse que ele não sabia o que estava falando. Aqui, isso nunca aconteceu.

Sabe o que é ver uma pessoa comer com gosto? Agradecer você por não passar fome? Eu me arrepio todo. Teve um menino que vinha pegar pão aqui para a família comer. Muitas vezes, conversei com ele, falando que ele era novo, que tinha condição de arrumar um serviço. Ele aceitou a ajuda. Um dia, levei ele até uma firma que estava com vagas abertas. Ele conseguiu o emprego. Depois, voltou para agradecer. Até comprou pão.

Muitas histórias passam por aqui. Tinha um rapaz que vinha aqui e comprava pão e leite. Uma vez ele levou só leite. Descobri que ele era limpava quintal de casas e, quando o serviço não aparecia, o dinheiro só dava para um ou outro. Uma vez, estava ocupado e não vi quando ele saiu só com o leite. Assim que me avisaram, corri atrás dele para doar os pães. Percorri a cidade toda e não o encontrei. Quase chorei. Voltei para a padaria e avisei todo mundo: quando ele levar só leite, não me deixe sair sem o pão.

Tem muito dono de padaria que poderia fazer mais que eu, outros comerciantes, empresários. O cliente não vai deixar de pagar e pegar doação se não precisa. Ninguém perde. E ganha quem mais precisa.

Depoimento dado a Thais Lazzeri
Foto: Bruno Menezes