PRIMEIRA PESSOA

Eu só queria fugir

Abdul Wahab Muhammed, 27 anos, vítima de trabalho escravo na Arábia Saudita, hoje vive no Brasil

query_builder 5 abr 2017, 14h30

Em 2006, eu tinha 17 anos, vivia em Gana e trabalhava como mecânico em minha própria oficina. No ano seguinte, um amigo que agenciava viagens para fora do país me convidou para trabalhar em uma companhia na Arábia Saudita. Não pensei duas vezes antes de aceitar a oferta em uma empresa no rico país árabe.

Vendi meu pequeno negócio e juntei o dinheiro para comprar a passagem e encomendar o visto de trabalho. Gastei 1.400 dólares (cerca de 4000 reais), que era tudo o que tinha. Peguei o avião na capital, Acra, passei pelo Cairo e cheguei a Riad, na Arábia Saudita. Logo que desembarquei percebi que havia sido enganado. Tudo o que meu amigo havia dito era mentira. Fui levado para Sakakah, uma cidade a mais de 900 quilômetros da capital, e lá entendi que iria trabalhar em uma casa de família como faz-tudo, não como mecânico.

Fiquei indignado. Nada daquilo havia sido combinado. Deixei a minha oficina em Gana para trabalhar como mecânico em uma empresa, não para limpar a casa e levar os filhos do meu patrão para a escola. Por três meses, não recebi remuneração. Meu chefe dizia que eu ainda lhe devia o dinheiro da passagem e do visto.

Eu era tratado como escravo. Trabalhava até 21 horas por dia. Dormia por apenas três horas em um quarto minúsculo na casa do meu patrão, que só me pagava quando julgava necessário.

Depois de 19 meses nessa casa, descobri que um amigo ganês trabalhava como motorista para uma empresa de ônibus na Arábia Saudita. Consegui o número dele e começamos a conversar. Quando soube que ele passaria por Sakakah, a trabalho, combinamos de nos encontrar na rodoviária e pegar um ônibus para Jidá, o maior centro portuário da Arábia Saudita. Eu só queria fugir.

"Para as mulheres, a situação é ainda pior. A maioria sofre abusos sexuais e não pode sair sozinha de casa"

No dia combinado, em vez de pegar os filhos do meu chefe na escola, como de costume, dirigi até uma delegacia próxima à rodoviária e entreguei a chave do carro a um policial. Encontrei meu amigo e peguei o ônibus. Dois dias depois, cheguei a Jidá. Bati de porta em porta em busca de oportunidades e acabei contratado por uma oficina mecânica. Meu novo empregador teve de providenciar uma segunda via no meu passaporte, que havia sido confiscado pelo antigo patrão, e alterar o meu visto de trabalho. Meu ex-chefe exigiu dinheiro, mas a companhia aceitou pagar. Tinham gostado muito de mim.

Eu voltei para Gana em 2013, depois que meu pai faleceu. Ao chegar, reencontrei o tal amigo que havia me aplicado o golpe e o perdoei. Ele também era mecânico e continua na mesma profissão. Nunca foi preso nem devolveu meu dinheiro.

Sempre soube da existência desse tipo de agente em Gana, mas não fazia ideia do que acontecia com as suas vítimas. Conheci gente que havia sido contratada para trabalhar em grandes cidades e terminaram em vilarejos que não tinham sequer energia elétrica. Para as mulheres, a situação é ainda pior. A maioria sofre abusos sexuais e não pode sair sozinha de casa. Os filhos dos patrões costumam iniciar sua vida sexual com essas mulheres, escravizadas.

Reabri minha oficina, mas foi difícil conciliar o trabalho com a administração da enorme família deixada por meu pai: quatro esposas e 28 irmãos. Isso terminou em uma grande briga familiar. Comecei a ser ameaçado pelos mesmos primos que quiseram que eu me tornasse o novo chefe da família. Fechei o pequeno negócio e me escondi na casa de um amigo, Ernest. Quando eles descobriram onde estava, foram atrás de mim. Na tentativa de me defender, o irmão de Ernest acabou ferido por um facão.

Decidi então deixar novamente o país. Conversei com Ernest, que conseguiu dois vistos para trabalharmos no Panamá. A nossa viagem incluía conexões em Togo e no Brasil. Quando chegamos aqui, dormimos no aeroporto e perdemos o avião que nos levaria até o Panamá. A companhia nos informou que seríamos deportados, mas decidimos resistir. Perdemos de propósito o voo de volta a Gana e ficamos no aeroporto por mais duas semanas. Nesse período, conhecemos um australiano e um americano que nos ajudaram a entrar no país como refugiados.

Em São Paulo, consegui achar trabalho facilmente. Validei meus certificados de estudo e trabalho como mecânico em uma fabricante de carros. Nunca antes havia passado pela minha cabeça morar no Brasil. As pessoas aqui me tratam com respeito e me proporcionaram grandes oportunidades. Jamais me senti prejudicado por ser um refugiado. Aqui sinto que somos todos iguais.

Depoimento colhido por Beatriz Magalhães
Foto por Heitor Feitosa