PRIMEIRA PESSOA

O que mais doía era o choro deles à noite

Antar Davidson de Sá, 32 anos, cientista político americano, filho de pai brasileiro, e ex-funcionário de um abrigo para crianças imigrantes, nos Estados Unidos

query_builder 20 de jun 2018, 17h30

Eu trabalhei no abrigo Estrella do Norte, para imigrantes menores de idade, em Tucson, no Texas, entre 21 de fevereiro e 12 de junho. Pedi demissão uma semana atrás porque não podia concordar com a maneira como as crianças e adolescentes eram tratados. Todos os dias, pouco antes das 7 horas, os monitores que assumem o turno da noite colocam os menores para dormir. Para mim e vários outros que também trabalharam ou ainda trabalham no abrigo, esse era um momento de tristeza profunda. Era nessa hora que dezenas de crianças, com idade entre 4 e 17 anos, que foram separadas dos pais depois que eles foram presos tentando entrar ilegalmente nos Estados Unidos, caíam em prantos ao ir para cama mais uma vez sozinhos. Caminhávamos pelos corredores e ouvíamos o choro que vinha do outro lado das portas dos quartos, onde estavam essas crianças. Isso era o que mais me doía.

Compreendo que esses meninos e meninas não podem ficar pela rua ou nas prisões comuns para onde foram levados os seus pais, mas nos quase quatro meses em que trabalhei naquele lugar também aprendi que o tratamento que está sendo dado a eles não difere muito do que ocorre em uma prisão. Essas crianças perdem o contato com o mundo externo e com as suas referências mais elementares, que são as suas famílias. Em tese, esses locais deveriam ajudá-las a se preparar para ingressar em uma escola pública, a ser assimiladas pela sociedade.

Mas pelo menos no abrigo onde eu trabalhei não é isso que acontece. A maioria dos funcionários é de mulheres mexicanas com mais de 50 anos, mal remuneradas e sem nenhuma qualificação e paciência para lidar com o problema. Os poucos que têm formação para isso só falam inglês e espanhol. Quando os primeiros meninos brasileiros chegaram ali, no fim de maio, percebi que a situação das crianças dessa nacionalidade é a mais absurda e triste. Além de mim, ninguém mais falava português no abrigo. Isso faz com que as crianças brasileiras se sintam ainda mais perdidas e solitárias. A administração do abrigo as trata como se fossem obrigadas a entender espanhol. A gota d'água foi a falta de sensibilidade diante da cena de três irmãos brasileiros que estavam chorando, pois achavam que a mãe deles havia morrido. Os funcionários pediram aos meninos que parassem de se abraçar naquele momento de desespero. E, como lá as regras são bem rígidas, eles nem puderam permanecer juntos, pois as crianças são separadas por faixa etária. Uma vez por semana, aparece uma psicóloga para atender as crianças. Para falar com os brasileiros, ela usava um tradutor no celular. Não é preciso ser muito esperto para saber que essas crianças necessitavam de estar frente a frente com alguém que pudesse dar a elas o mínimo de suporte emocional em seu idioma.

Comecei a investigar o local e vi que tem gente ganhando muito dinheiro com esse negócio dos meninos presos na fronteira, mas sem lhes oferecer a atenção adequada, pela qual o governo paga muito bem. Digo isso porque existem pessoas achando que minha decisão de denunciar o caso é política. Não votei nas eleições passadas. Para mim, nem tudo que o presidente Donald Trump faz é ruim. Apoio as medidas dele em relação a Israel e Irã, por exemplo. Mas isso não me faz cego diante de outras questões. Uma delas é a migratória. Vi na prática que separar essas crianças dos pais é algo muito triste e que essa situação está sendo conduzida de forma errada por meu país.

Quando eu era menino, meu pai brasileiro nos tirou da região de Palo Alto, onde passei minha infância, para conhecer a periferia do Rio de Janeiro. Vivi oito anos em um lugar pobre, pois, para ele, era importante conhecer de onde ele veio, como ele vivia e se construiu como homem, hoje um respeitado mestre de capoeira. Foi a melhor experiência de minha vida. Além do mais, sei também que ele já foi um imigrante ilegal nos Estados Unidos. E que a família da minha mãe, que chegou ao país fugindo da perseguição nazista na Europa, também vivenciou a experiência da migração. Apesar disso, minha decisão de denunciar essa injustiça não tem nenhum fundo emocional. Faço pela convicção de que não é razoável ver essas crianças sendo utilizadas por esses abrigos como negócio. O dinheiro dos meus impostos não pode ser usado assim. Se o objetivo do governo é proteger essas crianças, como tem sido dito, isso precisa ser revisto. Eu sou uma testemunha de que estamos fracassando nessa missão e que, independentemente de qualquer visão política, não devemos mais permitir que essas crianças continuem sendo traumatizadas pelos fatos ocorridos nessas organizações pouco ou nada profissionais.

Depoimento colhido por Leonardo Coutinho
Foto: MarÌa León/EFE