PRIMEIRA PESSOA

Eu vi o inferno na Terra

Chifusa Wakigawa, 87 anos, japonesa, sobrevivente da bomba atômica de Nagasaki e moradora de Volta Redonda (RJ)

query_builder 8 set 2016, 17h35

Foi apavorante ouvir, pouco tempo atrás, o som que saiu de uma chaleira novinha que eu havia posto no fogão de minha casa, em Volta Redonda. Tive de jogá-la no lixo. O barulho me fez lembrar do momento mais terrível de minha vida, há 71 anos, em minha cidade-natal, Nagasaki, no Japão. Isso porque o chiar era muito parecido ao que as sirenes emitiam durante a Segunda Guerra para avisar a população da chegada de bombardeiros americanos. O alarme indicava que deveríamos correr para nos esconder em abrigos construídos fora de nossas casas. Em 1945, quando o conflito se encaminhava para o fim, eu era uma adolescente de 16 anos e já estava acostumada com aqueles alertas. O tempo todo nós sofríamos ataques de aeronaves B-29. Eu dormia sempre vestida, pronta para fugir ao menor sinal de perigo. Entretanto, a bomba que cairia sobre a cidade no dia 9 de agosto não iria significar – nem para mim nem para o mundo – apenas mais um episódio banal do cotidiano da guerra.

Era por volta das 11 da manhã e eu estava no meio do meu trabalho, em uma fábrica de equipamentos bélicos. Nada sabíamos do que havia ocorrido três dias antes em Hiroshima e que viria a se repetir em Nagasaki. Enquanto eu ajudava uma amiga a limpar a lama de peças de torpedos, um clarão vertiginoso invadiu a vidraça da janela, acompanhado pelo som das sirenes. Na sequência, um estrondo ensurdecedor tomou conta do ambiente. Por sorte, sei hoje, uma parede atrás de mim caiu, inclinada, sobre uma mesa que me serviu de proteção. Tudo ocorreu tão rápido que pensei, por instantes, ter morrido. Quando o barulho parou, apalpei meu corpo: não tinha ferimentos. Não conseguia ver nada; acreditava estar cega. Contudo, aos poucos, a visão voltou e pude observar o que se passara. À minha volta, só havia escombros e muitos, muitos mortos. Saí correndo para casa. No caminho, deparei-me com cadáveres carbonizados, irreconhecíveis como seres humanos, vítimas ensanguentadas clamando por socorro e queimados tentando saciar a sede na beira do rio já contaminado. Nunca se apagou da minha memória a cena de uma mãe segurando firme um bebê já sem cabeça. Ela implorava por água como se ainda não tivesse caído em si. Eu vi – não há outro modo de descrever - o Inferno na Terra.

"Tudo ocorreu tão rápido que pensei, por instantes, ter morrido. Quando o barulho parou, apalpei meu corpo: não tinha ferimentos. Não conseguia ver nada; acreditava estar cega"

Em nossa residência, encontrei minha mãe salva. Naquela noite, nós duas rumamos para um cemitério que ficava no alto de uma montanha – era o lugar mais protegido do caos. Lá, dormimos ao lado de túmulos de desconhecidos, avistando a desoladora paisagem do que havia sido Nagasaki. Seis dias após a queda da bomba atômica na cidade, em 15 de agosto, o imperador japonês anunciou nossa derrota, pondo fim ao conflito. Só que, para nós, a situação não melhorou. Eu tinha medo de me tornar uma vítima dos ataques sexuais protagonizados por soldados americanos que ocupavam nossas terras.

Quando jovem, eu sonhava em ser professora e bailarina. Com a tragédia, tive de me contentar em virar bancária. Em 1953, eu e meu marido não aguentávamos mais viver no Japão. Pegamos, então, nosso filho de quase dois anos de idade e embarcamos em um navio rumo ao Brasil. Aqui nos instalamos na cidade rural de Maria da Fé (MG). Meu esposo, já falecido, e que era piloto da aeronáutica em nosso país, passou a plantar batatas em um pequeno pedaço de terra. Tivemos outros três filhos, abrimos uma bicicletaria e nos mudamos para Volta Redonda. Hoje, apesar de ainda mal falar o português, não voltaria para o Japão – por nada. De lá, guardo apenas a radiação que tomou meu corpo e ainda causa dores e estranhas alterações em minha saúde. E sempre que se aproxima o fatídico dia 9 de agosto, a traumatizante lembrança daquela manhã chega a me deixar de cama.

Depoimento colhido por Talissa Monteiro
Foto por Daryan Dornelles