O machismo não escolhe gênero musical; está presente no rock, no rap e até nos clássicos considerados inofensivos (vide "Run For Your Life", dos Beatles). E, é claro, no fenômeno sertanejo. Não é o caso de atirar no mensageiro, pois a cultura produzida e consumida é uma consequencia da sociedade em que vivemos. Os pensamentos e comportamentos reproduzidos e normalizados são anteriores a nós todos, e, justamente por isso, precisam ser apontados e discutidos.
Não é "só" uma música, é o reflexo do mundo onde vivemos.
Quando multidões acham romântico ouvir:
"Desculpa a visita/ Eu só vim te falar/ Tô a fim de você/ E se não tiver, cê vai ter que ficar/ Eu vim acabar com essa sua vidinha de balada/ E dar outro gosto pra essa sua boca de ressaca/ Vai namorar comigo, sim!/ Vai por mim, igual nós dois não tem/ Se reclamar, cê vai casar também",
(Vidinha de Balada - Henrique e Juliano)
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ou
"Ciúme não/ Excesso de cuidado/ Repara não/ Se eu não sair do seu lado/ Tem uma câmera no canto do seu quarto/ Um gravador de som dentro do carro/ E não me leve a mal/ Se eu destravar seu celular com sua digital" (!!!)
(Ciumento Eu - Henrique e Diego)
"Entendo que, à primeira vista, possa parecer exagerada para alguns a discussão de discursos que ecoam dentro do que consumimos como entretenimento, mas é necessário falar sobre esse assunto. Tratar isso tudo como normal reforça essa característica doente de nossa sociedade de tratar a mulher como posse, como bem, como prêmio, como prenda."
Fica bastante evidente a romantização de comportamentos abusivos disfarçados de romance. Controle disfarçado de cuidado, nada de novo no front. Esse discurso é mais velho do que andar para a frente e não vem de um príncipe encantado que vai "cuidar" da mulher que ama. Ele vem de quem puxa o cabelo da garota na balada, não aceita não, força sexo, força afeto, força todas as barras possíveis e imagináveis. E isso não é romântico.
Nem isso:
"Eu vou fazer um contrato/ Se liga nas cláusulas/ Assina embaixo/ E não muda nada/ Vai ter que acordar com um beijo todo dia de manhã/ E aceitar café na cama com chazinho de hortelã/ Ganhar massagem no pezinho na banheira de espuma/ E, depois do jantar, a louça é minha e não é sua/ Já vou deixando bem claro/ Esse contrato é vitalício/ Cê tá amarrada aqui comigo/ Nesse contrato da paixão/ A rescisão é 1 milhão/ De onde cê vai tirar isso?".
(Contrato vitalício - Jorge e Mateus)
Imposição, ainda que trajada de amor, não é nada bonito. Esses comportamentos são tão aceitos e arraigados que até quando tentam um acerto (tem que lavar louça mesmo e café da manhã na cama é uma maravilha) acabam resvalando e reforçando comportamentos nocivos (ficar "amarrada" e não poder sair de um relacionamento é bom em qual universo?)
Tratar mulher como posse também não é nenhuma novidade:
"Ela queima o arroz/ Quebra copo na pia/ Tropeça no sofá, machuca o dedinho/ E a culpa ainda é minha/ Ela ronca demais/ Mancha as minhas camisas/ Dá até medo de olhar/ Quando ela tá naqueles dias/ É isso que eu falo pros outros/ Mas você sabe que o esquema é outro/ Só faço isso pra malandro não querer crescer o olho/ Tá doido que eu vou/ Fazer propaganda de você/ Isso não é medo de te perder, amor/ É pavor, é pavor/ É minha, cuido mesmo, pronto e acabou".
(Propaganda - Jorge e Mateus)
As pessoas não pertencem umas às outras e nem podem ser "escondidas". Essa ideia de que a mulher é um bem e pertence ao homem com quem se relaciona se reflete nos altos índices de feminicídio sob as manchetes de que o homem "não aceitou o fim do relacionamento", só para dar um exemplo. Mais uma vez: a normalização de um discurso violento. Não é romântico se ele aprisiona e tolhe a liberdade "queimando o filme" da parceira para evitar concorrência, como se ela fosse um produto. Não, não, não.
Entendo que, à primeira vista, possa parecer exagerada para alguns a discussão de discursos que ecoam dentro do que consumimos como entretenimento, mas é necessário falar sobre isso. Tratar isso tudo como normal reforça essa característica doente de nossa sociedade de tratar a mulher como posse, como bem, como prêmio, como prenda.
Nem o festejado "feminejo", sertanejo cantado por mulheres e que, geralmente, traz questões de amor sob uma perspectiva feminina, está ileso. Como já foi mencionado, o machismo é anterior a nós todos, e isso inclui as mulheres. Ao criar um eu lírico que reproduz o senso comum, essas ideias vem junto, pois é justamente no senso comum que elas habitam confortavelmente.
"Só vim me desculpar/ Eu não vou demorar/ Não vou tentar ser sua amiga/ Pois sei que não dá/ Você vai me odiar/ Mas eu vim te contar/ Que faz um tempo/ Eu me meti no meio do seu lar/ Sua família é tão bonita/ Eu nunca tive isso na vida/ E se eu continuar assim/ Eu sei que não vou ter/ Ele te ama de verdade/ E a culpa foi minha/ Minha responsabilidade eu vou resolver/ Não quero atrapalhar você /E o preço que eu pago/ É nunca ser amada de verdade/ Ninguém me respeita nessa cidade/Amante não tem lar/ Amante nunca vai casar/ E o preço que eu pago/ É nunca ser amada de verdade/ Ninguém me respeita nessa cidade/ Amante não vai ser fiel/ Amante não usa aliança e véu."
(Amante Não Tem Lar - Marília Mendonça)
Aqui podemos ver o sofrimento da mulher que assume a culpa de um relacionamento extraconjugal. Ué, ela traiu sozinha? Essa ideia de que a amante é uma mulher malvada e destruidora de lares que seduz o pobre homem inocente também já não dá mais. Cadê a responsabilidade da pessoa que tinha compromisso nessa história? Claro: é um eu lírico reproduzindo o que passa uma mulher nessa posição, mas esse peso todo vem dos conceitos ultrapassados e machistas que são aceitos como norma.
Passou da hora de enxergar a mulher como sujeito e não como objeto, passou da hora de parar de culpar a mulher por ciúme, por traição, por tudo. Nem a Eva dos cristãos aguenta mais tanta culpa e tanta vergonha.