A popularidade da expressão "pai é quem cria" revela quanto a questão da paternidade socioafetiva está presente nas famílias brasileiras. Estudioso do assunto, o hoje ministro Luís Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, quando era professor de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, definiu a filiação socioafetiva como a relação que se constrói não com base na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho e tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico. Mas o aumento de casos na Justiça pedindo o reconhecimento de vínculo com o pai biológico levantou uma importante questão, sobre a qual o STF se debruçou no mês passado: é possível a um filho requerer as duas paternidades?
Em 21 de setembro, a Suprema Corte brasileira tomou uma decisão que promete trazer impactos relevantes nos direitos patrimoniais e sucessórios das famílias. Segundo os ministros, "a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". Isso quer dizer que o fato de alguém ter, na sua certidão de nascimento, o nome de um pai socioafetivo não impede que essa mesma pessoa consiga, na Justiça, também o nome do pai biológico em seus documentos. A decisão é importante por reconhecer o vínculo socioafetivo enquanto também admite a mutiparentalidade no Direito brasileiro. O Supremo Tribunal Federal deixou clara a aceitação do reconhecimento do vínculo concomitante e da coexistência de seus efeitos jurídicos, como direitos sucessórios e a alimentos.
Se por um lado a decisão foi um alento a respeito das relações de afeto, por outro poderá gerar ações injustas e totalmente contrárias à prevalência do afeto em relação à paternidade biológica. Um dos efeitos colaterais pode ser o ajuizamento de ações frívolas, quando, mesmo amparado afetivamente e patrimonialmente pela figura do pai socioafetivo, o filho busca pelo "pai" genético com foco tão somente no patrimônio. E mais: a reprodução assistida heteróloga deverá ser amplamente afetada, já que aqueles que doam material genético poderão, no futuro, ser chamados a assumir obrigações das quais estariam isentos.
Ainda há muito a refletir. Os ministros do Supremo julgaram a ação 898.060-SC, que tinha como tese definir a prevalência ou equiparação da filiação socioafetiva em relação à biológica. O caso concreto discutia o reconhecimento tardio de uma paternidade biológica em substituição a uma paternidade socioafetiva e registral. Ou seja, uma mulher — maior de idade — ajuizou ação para que fosse reconhecida sua filiação genética, mantendo-se também o registro do pai socioafetivo, ou seja, aquele que a criou e registrou. Apesar de definirem a tese, os ministros deixaram claro que, apesar de a decisão ter colocado balizas sobre o tema, as próximas ações judiciais devem ser analisadas caso a caso.
É preciso lembrar que a socioafetividade surgiu como decorrência natural da recomposição das famílias, ou seja, quando um novo integrante passa a exercer o papel paterno ou materno, mesmo não havendo vínculo genético entre os envolvidos.
Assim, para que haja vínculo socioafetivo, é preciso haver uma relação de fato, vivenciada concretamente entre os envolvidos, com manifestações afetivas e que tenham como característica, além da afetividade, a estabilidade e a ostentabilidade. A presença dessas características levaria ao reconhecimento da paternidade e aos consequentes efeitos jurídicos consubstanciados no vínculo da socioafetividade.
O professor Paulo Lôbo, da Universidade Federal de Alagoas, destaca que o olhar sobre a questão deve ter como base a distinção entre a descendência genética e a filiação. Essa distinção é vital para a compreensão do tema. Ele afirma: "ascendente é quem gera, pai é quem cria".
Apesar de parecer inovadora, a socioafetividade já é reconhecida pelos tribunais brasileiros e pela doutrina como suficiente para consagrar o vínculo parental, juntamente com a filiação biológica, a registral e a adotiva. A parentalidade socioafetiva é uma realidade do Direito de Família brasileiro, com reconhecimento jurídico consolidado há muitos anos. O Superior Tribunal de Justiça tem decisões a respeito desde a década de 1990.
No caso das reproduções assistidas, é importante esclarecer também que a estrutura do Direito Civil brasileiro garante, por meio do direito da personalidade, o conhecimento da ascendência genética. Portanto, sempre será possível buscar a origem genética por meio de exames de DNA. Todavia, buscar a origem genética não significa igualar a resposta genética ao direito de filiação — que são distintos — se a paternidade ou mesmo a maternidade já estiver definida por figura paterna ou materna preenchida de forma registral socioafetiva, ou pela adoção, ou ainda pela própria reprodução assistida heteróloga. A busca da origem genética, apesar de possível, não teria o condão ou poder de alterar ou igualar a paternidade/maternidade quando elas já estão preenchidas. Ao igualá-las ou sobrepô-las, teremos consequências jurídicas para ambos os lados, como por exemplo, direito a alimentos e a sucessão.
É importante ter em mente que o reconhecimento da socioafetividade não traz risco algum para a figura do genitor. O vínculo biológico segue presente, o que não se questiona. Até porque, em alguns casos, o vínculo biológico é necessário, como nas situações de estabelecimento de uma paternidade desconhecida — para filhos que não possuam pais registrais ou afetivos, por exemplo —, situações nas quais segue bastando a comprovação do vínculo biológico, via exame em DNA, para o estabelecimento da paternidade.
Entretanto, há que se distinguir os casos nos quais exista uma paternidade socioafetiva e registral consolidada há muitos anos, em um dado momento, pretenda-se a desconstituição dessa paternidade apenas com a alegação de ausência de vínculo biológico.
Os casos tormentosos são esses onde se pretende uma desconstituição de uma dada paternidade registral e socioafetiva já consolidada, apenas por demonstração de ausência do vínculo biológico. A complexidade dessas situações fáticas deve levar em conta também a força do vínculo socioafetivo e registral no momento da deliberação final. Ou seja, nessas hipóteses, pode não ser suficiente apenas a demonstração da falta do vínculo genético.
Vínculos biológicos, afetivos, registrais e adotivos são elos de parentesco e, como tais, encontram a mesma dignidade constitucional. Em vista disso, o que parece mais indicado é atentar para a dimensão do fato, da vida. Apenas a realidade concreta dirá qual espécie de vínculo prevalecerá em cada conflito específico.