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Boneca LOL: um fenômeno nada espontâneo

Brinquedo se transformou em modismo por causa de uma complexa estratégia de divulgação feita através de youtubers mirins

Por Renato Godoy*

query_builder 16 fev 2018, 11h25

* Renato Godoy é assessor de Relações Governamentais do Programa Criança e Consumo, do Alana

A cada data comemorativa surgem pedidos inusitados de crianças por brinquedos dos quais nunca se ouvira falar, até então. Personagens novos, remakes de sucessos antigos e produtos aparentemente simples, mas que levam os pais a questionarem o porquê do preço elevado. Um desses fenômenos, que parecem brotar espontaneamente entre as crianças, é a boneca LOL, produzida pela empresa de brinquedos Candide. Nesse caso, o fenômeno não tem nada de espontâneo.

Trata-se de uma complexa estratégia de divulgação que se vale da influência de youtubers mirins e seus populares vídeos de unboxing – termo que denomina o ato de desembrulhar o produto e que já integra o vocabulário de famílias com crianças pequenas. O preço do brinquedo varia entre 60 e 200 reais. Às vésperas do Natal, consumidores e comerciantes se queixaram da falta do produto, tamanha a demanda.

A LOL é uma boneca de cerca de 8 centímetros, envolta por sete camadas de plástico, que escondem surpresas, itens de vestuário e a própria identidade da personagem, que só é revelada após todo o processo de unboxing. A característica central do brinquedo, então, já se confunde com a sua própria estratégia de divulgação. Tal como nos vídeos de youtubers mirins, o principal atrativo da boneca é o ato de desembrulhar a embalagem e encontrar as novidades, que surgem a cada camada de plástico descartada. O produto é a mensagem. E vice-versa.

A série LOL contém dezenas de personagens e algumas das bonecas são consideradas “raras”, o que tem levado grupos de mães e pais a organizarem trocas de bonecas repetidas, para contemplar os desejos de suas filhas e filhos, que almejam completar a coleção. A linha de bonecas é um convite para despertar um anseio por compras em série, o chamado colecionismo, sentimento muito arraigado entre crianças e do qual uma parcela do mercado se utiliza para acumular cifras.

Bonecas Lol da Candide (Divulgação/Candide)

Algumas famílias afirmam já ter gasto até 2 000 reais para completar a coleção de suas crianças, em busca de uma boneca dourada, a mais difícil de ser encontrada. A exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos, esta é uma campanha de divulgação maciça, que usa a influência de youtubers famosos para despertar a atração incessante das crianças pelo brinquedo.

Uma busca no Youtube com os termos “boneca LOL” dá a dimensão da relevância desse fenômeno: quase 70 000 resultados. Dois canais do Youtube, um protagonizado por um adolescente de 17 anos, com 1 milhão de seguidores, e outro por uma garota de 12, com 3 milhões de assinantes, mostram o vínculo da estratégia de divulgação por meio de vídeos. Ambos os canais somavam, até o fechamento deste texto, 113 vídeos com a boneca LOL em destaque.

Os dois youtubers divulgaram o produto em seus canais meses antes de a boneca ser lançada no Brasil, em julho de 2017. O garoto, por exemplo, pode ser visto em um vídeo de março de 2017, no stand da marca Candide, falando sobre a boneca LOL. A gravação foi feita em uma feira internacional de negócios de brinquedo, cuja entrada é franqueada apenas a “profissionais do setor”, de acordo com o site do evento.

"Uma zona cinzenta impede crianças, e até adultos, de decifrarem o que é publicidade, entretenimento, informação ou uma ação espontânea dos youtubers. E as empresas têm tirado proveito dessa confusão para promover estratégias de marketing."

Em uma de suas publicações, com 1 milhão de visualizações, o youtuber demonstra as diferenças entre a boneca original e a fake, ou “falsiane”, como ele apelidou, utilizando-se de um jargão popular nas redes sociais. Por fim, recomenda que o consumidor opte sempre pela original, já que os preços são “quase os mesmos” - no comércio ambulante, a versão não licenciada da boneca pode ser encontrada por até metade do preço.

Em uma breve busca nos comentários desse vídeo, é possível observar como uma mensagem que enaltece um produto – aqui, especificamente, em detrimento de outro - pode provocar sentimento de exclusão e inferioridade entre crianças que não podem comprá-lo. “A LOL falsa é para crianças sem condições de comprar a verdadeira, pois ela é muito cara”, afirma um seguidor mirim. “Eu sempre quis ter uma LOL falsa. Para mim, já estava bom demais”, queixa-se outro usuário.

Nebulosidade conveniente

Há, neste e em outros casos similares, uma zona cinzenta que impede crianças, e até adultos, de decifrar o que é publicidade, entretenimento, informação ou uma ação espontânea dos youtubers. E as empresas têm tirado proveito dessa confusão para promover estratégias minuciosas de marketing.

A nebulosidade também beneficia os setores que preferem operar à margem da legislação brasileira. A lei contempla abusos de publicidade direcionada à criança, a partir do Código de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Constituição Federal e, mais recentemente, na Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Os youtubers mirins mais populares estão nos catálogos de agências de casting, que atendem agências de publicidade. No entanto, são raros os vídeos que deixam claro ao público quando o conteúdo é patrocinado. Esconder a intenção comercial de uma mensagem configura uma afronta à legislação. De acordo com o artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor, “a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”.

A internet não é uma terra sem lei. Não importa se a plataforma é hospedada no Brasil, na Turquia ou nos Estados Unidos. Sobre a rede incidem o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Marco Civil da Internet e, por óbvio, a Constituição Federal. Esta, que completa trinta anos no próximo outubro, prevê a prioridade absoluta dos direitos da criança, em seu artigo 227.

Certamente, impelir jovens a colecionar produtos e promover sofrimento entre aquelas que não têm condições de adquiri-los, a fim de auferir um lucro fácil, não estava nos planos de uma sociedade que optou por colocar suas crianças em primeiro lugar na Carta Magna.