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Ciência em retrocesso

Os cortes de quase metade dos recursos do ministério dedicado à ciência devem nos levar a perder nossos melhores pesquisadores, comprometendo fortemente o destino do país

Por Sidarta Ribeiro*

query_builder 18 mai 2017, 21h40

Sidarta Ribeiro, neurocientista e coordenador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Há temas que deveriam unir uma nação, sob pena, em caso de desunião, de ela deixar de ser nação. Em temas de interesse nacional não importa se alguém é de centro, direita ou esquerda, ateu, católico, evangélico ou kardecista. O que é de interesse do Brasil deveria ser do interesse de todos os brasileiros. O investimento para o avanço da ciência e da tecnologia é um desses temas e influencia diretamente em nosso destino.

No início do governo Temer, o ministério dedicado à ciência foi unido ao setor de comunicações e, ao contrário do esperado, seu orçamento não aumentou. Em 30 de março, foi anunciado o corte de 44% nos recursos destinados à pasta. A previsão é de 3,3 bilhões de reais para 2017, valor quase igual ao de 2005 – que, corrigido pela inflação, corresponderia a 6,5 bilhões de reais. Ou seja, o valor que deverá financiar a pesquisa brasileira neste ano é a metade do de doze anos atrás, apesar de incluir agora as comunicações. Um dos principais efeitos disso é a corrosão em nosso capital humano, que já é palpável, mas deve se tornar ainda mais intensa. Nossos melhores cérebros tendem a partir.

O que é grave, pois o investimento na formação de pesquisadores e cientistas foi fundamental para a formação de várias nações americanas. As primeiras universidades da região foram fundadas em 1551 pelo rei Carlos V no Peru e no México. Remonta a 1636 a fundação da Universidade Harvard, o mais antigo centro de formação superior nos Estados Unidos. Na Argentina, o presidente educador Sarmiento revolucionou o ensino primário no final do século XIX, criando as bases para a excelência na produção do conhecimento que valeu a nosso país-irmão sucessivas gerações de importantes cientistas e cinco prêmios Nobel.

Infelizmente, nossa história é muito diferente. Somos uma nação historicamente atrasada em educação e ciência, sem prêmios Nobel, mas, sobretudo, sem ensino fundamental de qualidade. Atravessamos as épocas de Colônia e Império sem desenvolver a educação, com as honrosas exceções do Colégio Pedro II e das Escolas de Medicina do Rio de Janeiro e Salvador. A origem da Fundação Oswaldo Cruz, essencial para a saúde pública brasileira, data de 1900. A primeira universidade brasileira, embrião da Universidade Federal do Amazonas, foi criada em 1909. Em 1920 viria a Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1934 a Universidade de São Paulo.

Mecenato privado e importação de cérebros estrangeiros inauguraram a pesquisa profissional no Brasil, mas foi somente no início da década de 1950 que aconteceu a primeira inflexão profunda em nosso destino de nação analfabeta em letras, números e ciência. Essa inflexão heroica e lúcida foi a criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), instituições dedicadas a manter o nível máximo de qualidade na produção do saber.

Pela primeira vez o Brasil se propunha a fazer um esforço sistemático de formação de capital humano. Teve início o envio de bolsistas às melhores universidades nos EUA e Europa, buscando a fertilização de nossas ideias. Expandiu-se a pós-graduação, tendo-se a clara compreensão de que o investimento em ciência tem valor estratégico para o Brasil. O golpe militar de 1964 teve consequências contraditórias: por um lado, promoveu o êxodo de muitos de nossos melhores pesquisadores; por outro, Embrapa e Embraer, duas das mais importantes instituições tecnológicas do país, se consolidaram nesse período. Sem elas, não teríamos dado o salto de produtividade econômica que nos permitiu chegar a ser a sexta economia do mundo em 2011.

Com a redemocratização foi criado, em 1985, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Pela primeira vez em nossa história, a ciência passou a integrar oficialmente nosso projeto de país. Em meados dos anos 1990, com a popularização da internet, o cientista brasileiro teve amplo acesso a publicações internacionais. Pudemos sonhar em fazer ciência de ponta no Brasil, mas ainda nos faltavam recursos.

"Projetos aprovados não são pagos, o Ciência sem Fronteiras acabou e os laboratórios estão à míngua. Com os cortes, projetos da Capes e CNPq estão ameaçados. Trata-se da perda de uma geração inteira"

Foi nos anos 2000 que uma grande revolução aconteceu. O governo federal aumentou substancialmente o investimento na pesquisa nacional, fortalecendo o MCT. Por quase seis anos tivemos um físico de alto nível como ministro e o investimento em ciência foi feito não mirando no presente, mas no futuro. Centros de pesquisa se solidificaram e novas instituições de excelência foram criadas fora do eixo Rio-São Paulo. Institutos federais, universidades públicas e fundações estaduais de fomento se disseminaram pelo território nacional. Sem essa firme decisão estratégica, simplesmente não existiria o Instituto do Cérebro que dirijo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, um centro pioneiro no estudo da psiquiatria computacional – nossos achados mostram como, pela fala, é possível ter um diagnóstico precoce e preciso de doenças mentais como a esquizofrenia. Locais assim formaram pesquisadores que conduziram estudos com impacto internacional. A pesquisa feita no Brasil avolumou-se e passou a aparecer nas melhores revistas científicas do mundo, como Nature e Science.

A despeito de todos esses avanços, alguns problemas persistiram e até se agravaram. Uma impressionante combinação de ineficiência estatal e ganância privada nos faz pagar muito mais caro por insumos que demoram meses a chegar. O desacoplamento entre universidades e empresas impede a transformação de nossa crescente produção de artigos em patentes que levem a novos produtos. Por questões políticas, iniciativas preciosas como o Ciência sem Fronteiras foram superdimensionadas ao ponto do desperdício.

Todos esses problemas são reais e demandam solução, mas o que o governo federal está fazendo é jogar fora o bebê com a água do banho, promovendo um desmonte sem precedentes do aparato estatal de fomento científico. A extinção do ministério dedicado exclusivamente à ciência jogou na lata de lixo da história o legado de um setor público dedicado à ciência. Qualquer pessoa com um mínimo de percepção da relação entre tecnologia e economia sabe que não é interesse do Brasil desfazer-se de sua infraestrutura científica. Chega a ser estarrecedora a sem-cerimônia com a qual as lideranças atuais implodem a pesquisa. Os projetos aprovados não são pagos, o Ciência sem Fronteiras acabou e os laboratórios estão à míngua. Com os novos cortes, projetos financiados pela Capes e pelo CNPq estão ameaçados. Aos poucos, nossos melhores pesquisadores partem. Muitos outros ficarão, castrados. O pujante parque tecnológico brasileiro está sendo sucateado. Trata-se da perda de uma geração inteira. É crime de lesa-pátria!

O que está em jogo é o destino da nação. O pior não será seguirmos sem ganhar o Nobel nem deixarmos de competir pelas descobertas mais importantes. Nossa soberania ficará profundamente comprometida quando nossos cientistas não conseguirem compreender os artigos que leem, quando nos descolarmos tanto da fronteira da ciência mundial que passaremos a mistificá-la, voltando a pagar caro pelos pacotes tecnológicos fechados que vêm do exterior. Sem uma guinada radical, rumamos céleres para a irrelevância. Mas ainda há esperança. A melhor educação pública do país acontece no Ceará e em Pernambuco. Os jovens são nosso maior patrimônio e precisam continuar a ser cultivados com todo o zelo de que somos capazes. Programação computacional, biologia molecular, robótica, nanotecnologia, inglês e mandarim são mais importantes do que nunca para nossos filhos e netos. É preciso a todo custo impedir que busquem esse conhecimento fora e que o futuro da nação pereça, antes que seja tarde.