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As muitas formas da água

A falta de recursos hídricos é o principal tema do Fórum Mundial da Água, em Brasília

Por Benedito Braga*

query_builder 20 mar 2018, 12h10

*Benedito Braga é Presidente do Conselho Mundial da Água, secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo e professor Titular de Engenharia Civil e Ambiental na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) (afastado para exercer a função de Secretário de Estado). É Ph.D em recursos hídricos na Stanford University, Estados Unidos.

O diretor vencedor do Oscar deste ano, Guillermo del Toro, disse que seu filme se chama “A Forma da Água” porque “a água é como o amor, pode aparecer de mil formas, mas é sempre reconhecida imediatamente”.

Poucas coisas trazem uma sensação de paz tão grande para o ser humano como o som da água. Seja uma pequena cascata, um rio corrente, as ondas do mar, ou os pingos da chuva leve na janela. A água tem uma profunda ligação com a espiritualidade do ser humano, significando vida e purificação da alma.

No entanto, a água nem sempre recebe o tratamento com a devida reverência por parte do ser humano. A falta de recursos hídricos é o principal tema do Fórum Mundial da Água, em Brasília. Um risco do qual, obviamente, nós somos os principais expostos, pois não vivemos sem ela.

Com muita propriedade, o papa Francisco, na encíclica Laudato Sí, fala da importância de cuidarmos da água e de todo o meio ambiente. Francisco lembra que o nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos. E vai além, ressaltando que o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.

“Laudato si', mi' Signore, per sor'aqua, la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta”, como cantava São Francisco e tão bem foi citado pelo papa Francisco em sua encíclica: “Louvado Sejas, Meu Senhor, através da Irmã Água que é tão útil e humilde, e preciosa e casta”.

Além disso, o papa lembra que a escassez de água provoca o aumento do custo dos alimentos e vários produtos que dependem do seu uso. E o impacto de tudo isso, inclusive dos desastres causados pela maior variabilidade do clima, acaba sendo mais sentido por aqueles que são mais carentes. Assim, conclama que a água é um bem, é um insumo e, acima de tudo, que o acesso à água potável é um direito fundamental.

Crianças brincam em uma fonte de água no centro de Moscou, na Rússia (Maximov Vasily/AFP)

Mas para que se disponibilize a água para o abastecimento humano, para a produção de alimentos, para a indústria e comércio, para a geração de energia, paras atividades recreativas e esportivas, existe um custo. Se esse custo será pago através dos impostos do contribuinte ou através de tarifa, isso é algo que cada administração deve decidir. No caso do abastecimento humano e saneamento há arranjos bem sucedidos em vários formatos: existem boas empresas estatais, municipais, privadas e até iniciativas através de sociedades de propósito específico, numa espécie de atuação mista.

As soluções são variadas e cada caso deve ser analisado conforme as suas circunstâncias locais para se definir qual o melhor caminho. O que não se pode fazer é assumir discursos dogmáticos ou corporativos que defendam o atraso. Não se pode adotar, por exemplo, discursos de que toda empresa estatal é ineficiente, assim como não se pode afirmar que toda empresa privada coloca o lucro acima da boa prestação do serviço.

Outro fator importante para proteger os nossos recursos hídricos e melhor utilizá-los são os mecanismos de governança da água cada vez mais desenvolvidos no mundo inteiro. O Brasil adotou o sistema de comitês de bacia com a cobrança pelo uso da água. Um passo muito importante.

Hoje, o Estado de São Paulo, por exemplo, tem a cobrança pelo uso da água instituída em praticamente todas as Unidades de Bacia. Os recursos arrecadados têm a sua aplicação definida pelos próprios comitês de bacia, que são os nossos parlamentos da água, com ampla participação da sociedade.

Também em São Paulo, até julho deste ano todas as cidades do estado terão seu Plano Municipal de Saneamento. Isso vai proporcionar um melhor atendimento da população ao mesmo tempo em que vai garantir mais proteção aos mananciais de água e ao meio ambiente como um todo.

Outra experiência importante que vivenciamos em São Paulo foi o aprendizado com a crise hídrica gerada pela seca rigorosa de 2014 e 2015. Após as campanhas de conscientização e com o fim da seca, a população continua consumindo cerca de 15% a menos de água, tendo adotado um padrão de uso mais racional.

Todo esse aprendizado e esses esforços têm sido necessários para a melhora da situação das nossas águas, mais acesso aos serviços de saneamento, mais qualidade de vida para as pessoas, desenvolvimento socioeconômico e redução da pobreza.

No âmbito do Conselho Mundial da Água, fizemos um grande esforço para garantir que a ONU declarasse o acesso à água e ao saneamento um direito humano fundamental. Temos também acompanhado o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de número 6, da ONU, que prevê “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”.

De acordo com as Nações Unidas, ainda hoje 600 milhões de pessoas não têm acesso a água potável e perto de 2 bilhões não têm saneamento. Esses números tendem a aumentar em vista dos impactos das mudanças globais ligadas ao clima e à urbanização.

Para dar um diapasão ainda maior à questão, o Conselho Mundial da Água criou o Fórum Mundial da Água. Uma plataforma na qual, a cada três anos, especialistas do setor se reúnem para debater com os políticos, que são os efetivos tomadores de decisão. Assim, temos conseguido sensibilizar a classe política – presidentes, ministros, governadores, prefeitos e parlamentares - sobre a necessidade de colocar a água como prioridade.

E não basta apenas reconhecer a importância da água. É necessário encontrar meios técnicos, institucionais e financeiros para garantir a segurança hídrica. A troca de experiências realizada no Fórum, que tem a participação também do setor de fomento, empresas da área, técnicos, ambientalistas, ativistas e pesquisadores acadêmicos, ajuda a mostrar como cada país ou região está enfrentando determinado problema e quais soluções podem ser compartilhadas.

É o evento mais importante do mundo sobre o tema água e é realizado aqui no nosso país, que tem a maior reserva de água doce do planeta em estado líquido. O que é uma grande riqueza, mas também uma grande responsabilidade. O governo do Distrito Federal e o governo brasileiro serão os anfitriões desse grande encontro.

O tema do 8º Fórum Mundial da Água é “Compartilhando a Água” e é muito interessante que estudos mostrem que a maior parte dos conflitos relacionados à água no mundo tem sido resolvida por meios pacíficos. Não queremos ver o mundo conflagrado em futuras guerras pela água e por isso é preciso discutir desde já como será feito esse compartilhamento. O Brasil, por exemplo, tem duas grandes bacias compartilhadas: a do Amazonas e a do Paraná/Prata.

Não há como negar que, embora haja muito ainda a fazer, existe uma consciência crescente sobre a importância da água. Existem muitas experiências, muitas vozes que precisam falar e serem ouvidas e que podem buscar soluções conjuntas.