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O divórcio faz bem à família

A melhor garantia do casamento consiste na liberdade de desfazê-lo, fixada em lei há 40 anos. A legislação evoluiu bastante desde então – e os arranjos familiares, idem, o que impõe crescentes desafios ao Direito

Por Luiz Kignel*

query_builder 19 jul 2017, 18h00

*Luiz Kignel, advogado especializado em Direito da Família, membro do Grupo de Estudos de Empresas Familiares da Faculdade de Direito da GV/SP e sócio do escritório PLKC

Por mais antagônico que pareça, o divórcio ainda é a melhor garantia de um casamento, na medida em que permite a qualquer das partes o direito de reconhecer que o projeto de vida comum não é mais viável. Até a década de 70, contudo, a forte influência da Igreja fez prevalecer para toda a sociedade brasileira, independentemente da fé praticada, o dogma do casamento indissolúvel. Até os ateus sucumbiram ao mandamento religioso que vigorou como dispositivo constitucional nos idos da década de 30: Quod Deus conjunxit, homo non separet! O que Deus uniu o homem não separa! Permitia-se, então, apenas o desquite, pelo qual o casamento se rompia, mas não o vínculo conjugal. Com isso, cessavam os deveres de fidelidade e manutenção da vida em comum sob o mesmo teto, mas permaneciam obrigações como a mútua assistência. Rompida a vida comum, mas não o vínculo conjugal, novas uniões eram impensáveis e os desquitados que ousavam formar novas famílias o faziam à margem da lei, recebendo a censurável qualificação de concubinos.

Foi apenas em junho de 1.977, por força da Emenda Constitucional nº 9, que se instituiu o divórcio no Brasil, regulado pela Lei nº 6.515 de dezembro do mesmo ano, admitindo o rompimento integral dos vínculos do casamento – não sem antes a obrigatória separação judicial. Autorizado o divórcio, permitia-se, um ano depois, novo casamento civil – uma única vez. A Constituição de 1.988 admitiu o divórcio como forma de dissolução do casamento civil e inovou ao reconhecer a união estável entre homem e mulher como entidade familiar a ser protegida pelo Estado. No ano seguinte, suprimiu-se a restrição a um único divórcio, autorizando distintos casamentos e, portanto, sucessivos divórcios. Com o advento do novo Código Civil – em vigor desde janeiro de 2.003 –, a união estável foi definitivamente incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, dispondo-se as regras para a sua dissolução. Em janeiro de 2007, a Lei 11.441 instituiu para a separação e divórcio consensuais a opção pela via administrativa em Cartório de Notas, sem necessidade de intervenção judicial. A Emenda Constitucional nº 66 de julho de 2.010 reconheceu o direito de o casal optar pelo divórcio direto, sendo desnecessária a prévia separação judicial.

Os opositores ao reconhecimento do divórcio na década de 70 defendiam a indissolubilidade do casamento como forma de proteger a sociedade, alegando que o instituto da família corria risco de extinção. Mas isso certamente não aconteceu. Tanto é assim que a união estável, meio informal de união de duas pessoas, vem sendo cada vez mais regulamentada e igualada ao casamento civil por força de pressão da própria sociedade, seja nas questões patrimoniais, seja nas obrigações e direitos recíprocos e também na sucessão. Porque, no fim das contas, o que o cidadão deseja é o direito de se divorciar... para se unir novamente!

(iStock/Getty Images)

A família, portanto, segue preservada e altiva. O que se ampliou, isto sim, foram as formas como ela se apresenta, aí sim apenas possíveis a partir da instituição do divórcio. A família matrimonial – entenda-se, monogâmica e heterossexual, formada pelo casamento civil – teve seu conceito ampliado para receber em igualdade de condições os monogâmicos homossexuais. E abriu-se espaço para outros arranjos: a família informal, originada da união estável de casais, heterossexuais ou homoafetivos; a monoparental, formada por apenas um dos pais e os filhos; a anaparental, que abrange apenas os irmãos, descartando-se os ascendentes comuns; a socioafetiva, originada dos laços de convivência de pessoas sem filiação consanguínea; a multiparental, em que o casal, além da prole em comum, tem filhos de casamentos anteriores; e já se discute nos tribunais a paralela, que resulta de relações familiares simultâneas mantidas por um mesmo indivíduo (geralmente sem que uma família saiba da existência da outra).

Os casais que contraíram o casamento civil ou optaram pela união estável têm sua dissolução remediada pelo divórcio. Mas esse instituto, por si só, não resolve todos os desafios que as demais famílias impõem ao Direito. Filhos reconhecidos por força da paternidade (ou maternidade) socioafetiva terão direito a pensão alimentícia no divórcio dos pais não biológicos? É possível desconstituir uma filiação socioafetiva com os filhos do cônjuge ou companheiro do qual nos dissociamos? Até que ponto é juridicamente defensável proteger uma família paralela sem que isso se torne um incentivo às relações adulterinas?

Os desafios não são poucos, convenhamos. Mas como não há limites para o imponderável, surge no horizonte a família poliafetiva, fundada no direito de escolher concomitantemente mais de um amor. Não mais apenas dois, homem ou mulher, mas três (ou mais) que se relacionam entre si como cônjuges (se casados) ou companheiros (se convivendo em união estável). E se como família serão reconhecidos, como enfrentar o divórcio a três (ou mais)?

"Passados quarenta anos, a família segue preservada e altiva. O que se ampliou, isto sim, foram as formas como ela se apresenta, aí sim apenas possíveis a partir da instituição do divórcio"

Todo o arcabouço jurídico incorporado ao Direito de Família para regulamentar o divórcio não servirá para essa nova estrutura familiar. Qual o regime de bens que se aplicará em uma comunhão parcial entre três ou mais pessoas que se tratam, todas, como cônjuges ou companheiras umas das outras? Como se define a meação com mais de duas pessoas? Tendo uma mesma criança três pais na certidão de nascimento e divergindo o trio no exercício do poder familiar sobre filhos comuns, as decisões serão tomadas por “maioria simples”? Pelo Judiciário? Se o primeiro pretender se divorciar do segundo, mas esse segundo segue apaixonado pelo terceiro, instituir-se-á o divórcio parcial (figura jurídica atualmente inexistente)?

E assim, quatro décadas depois, surgem novos dilemas e uma única pergunta: até que ponto a legislação deve socorrer os arranjos individuais de cada cidadão? O Direito deve, sim, atender às demandas do indivíduo, mas o Direito de Família não é necessariamente a seara mais apropriada. Certos arranjos, em particular a família poliafetiva, bem poderiam ser discutidos no âmbito do Direito Societário ou Contratual, sem provocar um frenesi desnecessário.

Por maiores que sejam os desafios, nada disso põe sob ameaça a sociedade: não é pela existência do divórcio que se destroem famílias. Muito pelo contrário, ele segue como a melhor resposta civilizada para uniões que por razões absolutamente pessoais não podem mais prosseguir. Se não é um mecanismo perfeito de Justiça, forçoso reconhecer que confere a liberdade necessária ao cidadão em busca de uma família feliz.