É claro que a primeira vez que uma pessoa me fez um pedido de eutanásia e eu decidi realizá-la não foi o momento mais fácil da minha vida. Eu ainda posso lembrar do sentimento daquele exato momento, das decisões que tivemos de tomar no processo, de como as discussões aconteceram, até o instante em que a injeção final aconteceu.
O paciente tinha em torno de 55 anos e sofria de um caso terminal de câncer – estava simplesmente esperando para morrer. Eu não tinha completado 30 anos ainda, era um jovem médico que acabava de sair da faculdade. Ele me perguntou se eu estaria preparado para seguir com o processo de eutanásia, porque o sofrimento havia se tornado intolerável. E eu entendi que ele tinha o direito de fazer aquela escolha. A trajetória, dessa primeira pergunta até a hora em que eu realizei a eutanásia, durou seis meses – trata-se de uma orientação contínua até o momento final.
Não tenho nenhum arrependimento de ter feito. Nos dois casos em que pratiquei a eutanásia, senti que estava feliz de dar a resposta correta à pergunta mais íntima que um paciente pode fazer. E de deixar eles morrerem de uma forma digna, em vez de mantê-los sofrendo em vão. Nunca, por um milissegundo, tive qualquer dúvida sobre essa causa.
No mundo inteiro, inclusive no Brasil, os médicos conduzem procedimentos para dar fim à vida quando um paciente sofre de forma inevitável e pede: “Doutor, por favor faça alguma coisa!”. A diferença deles em relação à Holanda, primeiro país a legalizar a prática, é que a eutanásia virou assunto no país europeu. Em 1973 uma médica que realizou eutanásia foi processada, recebeu uma sentença leve e a discussão se tornou nacional. Com a visibilidade, outros médicos foram processados até que um caso chegou à Suprema Corte, que aplicou uma pena branda. Criou-se jurisprudência sobre o assunto, até que em 2000, com o auxílio de organizações não-governamentais, o governo aprovou uma lei para tornar a eutanásia uma prática regulada sob critérios rígidos a fim de coibir abusos.
Primeiro, é preciso ter uma solicitação - a própria pessoa deve pedir para morrer, e ninguém mais pode pedir por ela. Nenhum membro da família, nenhuma outra pessoa. O médico é responsável por observar se se trata de pedido voluntário e genuíno, ou seja, se o indivíduo realmente pensou nisso por si próprio.
O segundo critério é que o paciente deve estar em uma situação de sofrimento insuportável, sem nenhuma perspectiva de melhora. Se o médico concluir que o sofrimento é irreversível, ele deve submeter o pedido à consulta de um segundo médico independente, informar o paciente sobre todas as possíveis decisões alternativas e reportar o ato da eutanásia às autoridades. É claro que há a possibilidade de arrependimento. Por isso, o processo é longo, e o paciente pode a qualquer instante dizer: “Eu me arrependo dessa decisão e não quero mais fazer”.
O método utilizado é a injeção com medicações que param o funcionamento dos músculos, o que causa a morte. Não dói. Antes de usar a medicação, os médicos são obrigados a induzir um coma profundo, para que o paciente não perceba quando a substância é introduzida no corpo. A prática normal na Holanda é que o médico, no momento em que vai iniciar o procedimento, olhe para o paciente nos olhos e pergunte: “É isso que você realmente quer?”. Se o paciente apresentar qualquer sinal de hesitação, o médico para o processo imediatamente.
"Nos dois casos em que pratiquei a eutanásia, senti que estava feliz de dar a resposta correta à pergunta mais íntima que um paciente pode fazer"
É comum que as pessoas temam que tudo se transforme em uma bola de neve: começa com um pequeno número, a sociedade se acostuma e a prática se torna banal. Na Holanda, que tem 40 anos de experiência desde que a eutanásia começou a ser tratada com tolerância pelo Estado, não há nenhuma evidência disso. O crescimento é muito sutil e, no ano passado, 5,5 mil casos foram registrados. Isso corresponde a cerca de 3% das mortes no país.
A eutanásia não se tornou uma rotina, e sim uma situação normal em que os médicos ajudam o paciente a morrer sem sofrer tanto. Vemos que, desde o início até hoje, cerca de 85% dos casos acontecem por causa de doenças terminais terríveis, em que o paciente deveria morrer em até duas semanas após a eutanásia.
O argumento-chave utilizado por quem se opõe à eutanásia é a crença de que Deus é o único possuidor do direito de dar fim a uma vida que ele próprio deu. Não brigo com isso. Minha resposta é: se você não aprova a eutanásia, não faça. Na Holanda, a Igreja é contra essa prática. Mas um a cada dez católicos aprova a lei. É a solução ideal.
Os pacientes precisam ter opção de viver dignamente, até o fim, sem a obrigação de esperar que a natureza encerre a vida de forma horrível, desumana e sofrida. A eutanásia pode, sim, portanto, ser considerada um ato de amor. É a mais difícil decisão que um paciente pode fazer. E se o médico dá seu aval, é porque ele tem empatia com o paciente que diz “eu não quero mais continuar nesta vida nesse estado, considero que isso não é humano e quero que termine”. É preciso amar meu paciente para fazer isso.
Muita gente pensa que o médico é que decide se essa vida vale a pena ser vivida ou não. Eu diria que ninguém toma essa decisão além da própria pessoa que vai morrer. E se ela não pedir expressamente, não há eutanásia. Tudo depende de como você interpreta o juramento hipocrático. A Declaração de Genebra, adotada pela Associação Mundial dos Médicos em 1948, não determina que o médico deve estender a vida a todo e qualquer custo. E sim que deve respeitá-la. O objetivo do médico é diminuir o sofrimento. E em alguns casos, a única forma de tirar esse sofrimento terrível é dar fim à vida. São pessoas que estão doentes, estão ficando piores e vão morrer. E elas devem poder fazer a escolha de quando irão morrer.