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Ensino flexível, mas chances iguais

A reforma do ensino médio deve respeitar a individualidade do aluno, guiar-se pela absoluta igualdade de oportunidades e oferecer conteúdos relevantes e atuais. A obrigatoriedade de todas as disciplinas é contraproducente, mas a flexibilização do currículo deve ser feita com cuidado

Por Paulo Blikstein*

query_builder 23 set 2016, 13h40

* Paulo Blikstein, professor na Escola de Educação e Diretor do Centro Lemann, ambos da Universidade Stanford, EUA

Deus, ou o diabo, está sempre nos detalhes. Em uma época em que a sutileza dos detalhes é abafada pelos memes do Facebook, esquecemos de discutir as coisas em profundidade—e acabamos todos perdendo. Tomemos, por exemplo, a reforma do ensino médio. Como sempre, a solução não é binária e os detalhes fazem toda a diferença. Nessa discussão é comum ouvir que o ensino médio “é assim no mundo todo”. Em primeiro lugar, nada “é assim no mundo todo” – mesmo nos países da OECD, há uma diversidade enorme de soluções, flexibilizadas ou não, já que culturas e economias são diferentes e não há solução mágica.

Mas devemos sobretudo olhar para dentro. Temos enormes desigualdades e os dados indicam que um diploma superior no Brasil ainda traz um grande ganho salarial—percentualmente maior que em muitos países desenvolvidos. Nesse contexto, o princípio norteador de um projeto de ensino médio deve ser dar a mesma chance de acesso ao ensino superior e às profissões com alto status a todos os jovens brasileiros, independentemente de classe social. Isso significa que qualquer jovem deve poder escolher, em pé de igualdade, o que quer fazer da vida. Os filhos do dono da construtora ou do mestre de obras devem competir pelo mesmo curso ou pelo mesmo emprego, se quiserem.

A flexibilização deve estar do lado da procura e não da oferta

O “se quiserem” é uma parte importante da equação, e muitas vezes escapa aos dois lados do debate. A flexibilização deve estar do lado da procura e não da oferta, do lado do estudante e de seus interesses e não do burocrata ou do empregador. A opção pelo ensino mais profissional ou mais acadêmico não deve seguir a lógica da renda familiar, penalizando duplamente um jovem com menos recursos. E há um detalhe perigoso: em vez de dar liberdade de escolha, muitos querem dar uma espécie de “prêmio de consolação” ao aluno de baixa renda, quase que perversamente dizendo: “Você não seria nada na vida mesmo, então que tal um diploma técnico?” Um país que se pretende sério não trata seus jovens com prêmios de consolação, mas com políticas públicas que não perpetuem desigualdades.

Mas isso requer uma redefinição da educação técnica ou profissional. Muitas profissões associadas ao ensino técnico foram substituídas por robôs, software, ou inteligência artificial, outras tornaram-se tão complexas que requerem um grau superior técnico. O jovem brasileiro não pode encerrar a sua educação aos 17 anos em um mundo competitivo e tecnológico. Isso não significa que todos precisam ser advogados ou engenheiros, mas também precisamos de trajetórias educacionais que comecem no ensino médio profissional e que tenham a possibilidade de complementação de um grau superior (se o aluno quiser). E esses graus devem ser radicalmente inovadores, com profissões em design, robótica, programação de games, jornalismo online, historiografia digital, mineração de dados, fabricação digital e outros que nem existem ainda—campos desejáveis por jovens de todos os tipos e origens.

Flexibilização não é colocar alunos em caixas aos 14 anos

Os Estados Unidos tentaram por anos ter sistemas de “tracking”, ou seja, encaixotar os alunos considerados “bons” e “ruins” em turmas separadas e dar-lhes uma educação diferente. Foi um fracasso retumbante. O ensino médio norte-americano atual, ao contrário, oferece muito mais flexibilidade na escolha de disciplinas, no sentido de abrir horizontes e respeitar interesses intelectuais e profissionais. Para dar conta dessa diversidade de formações, as universidades norte-americanas selecionam seus alunos fazendo uma análise global, olhando para atividades extraclasse, portfolios, diversidade econômica e cultural, além de uma carta escrita pelo próprio candidato—algo que as universidades brasileiras deveriam urgentemente adotar, se realmente flexibilizarmos o ensino médio.

No Brasil, muitos apontam para a flexibilização não para aumentar o direito de escolha da jovem, mas colocá-la mais cedo em uma caixa, com a ilusão de que sabem o que querem fazer da vida com 14 anos. Isso não quer dizer que não possam explorar diversos talentos—inclusive vocações profissionais—e ter uma trajetória mais especializada. Mas não podemos criar caminhos sem volta na vida desses jovens, e precisamos ter conselheiros vocacionais nas escolas públicas.

Nem “mais do mesmo” nem “tudo ao mesmo tempo agora”

Muitos dos que são contra a flexibilização caem em um outro erro fatal: confiar demais na educação por decreto. Boa intenção, oferecida com má qualidade, é perversa. A ideia de oferecer 13 disciplinas no ensino médio para formar o cidadão completo, crítico e emancipado é ótima. Mas tenho certeza que o próprio Paulo Freire nos diria que para formar um cidadão crítico não precisamos “depositar” em sua cabeça conhecimentos de 13 disciplinas. O que garante a formação completa do cidadão não é a quantidade de conteúdo depositado, mas a forma e qualidade como são ensinados. É possível ensinar Filosofia de forma opressora e Matemática de forma crítica. E qualquer disciplina ensinada uma hora por semana tem poucas chances de fazer diferença, o que na prática acaba privando os alunos de uma formação aprofundada.

E essa questão revela o problema central, que é curricular. Afinal de contas, o que queremos que os alunos aprendam? A nossa resposta não pode ser “mais do mesmo” ou o “tudo ao mesmo tempo agora.” Se queremos mesmo fazer a diferença, a resposta deve ser ousada: vamos descobrir os conteúdos mais importantes para a vida no século XXI e colocá-los no ensino médio, mesmo que virem de cabeça para baixo o que entendemos como currículo escolar.

A intenção de reformar o ensino médio é excelente. Mas a melhor reforma será aquela que respeita a individualidade do aluno, não o vê como um mero insumo de produção industrial, tem como norte a igualdade de oportunidades e oferece conteúdos e métodos de ensino relevantes e atuais. Uma combinação difícil mas de forma nenhuma impossível, principalmente para um país criativo como o Brasil.

Ilustração por ALPHADOG