Eu gosto que as crianças sejam avaliadas. Gosto que vacilem sobre aquilo que sabem. Gosto que leiam as perguntas em diagonal e, de tão entusiasmadas, se precipitem e se tornem trapalhonas nas respostas. E gosto que fiquem um bocadinho “burras”, de vez em quando, e que “bloqueiem” (como os seus pais dizem), parecendo deixar de saber de responder ao mais elementar, errando onde era suposto que conseguiriam acertar, por mais que preservem raciocínios complexos e acertem naquilo que seria, facilmente, aceite que elas errariam.
No entanto, acho que somos todos muito batoteiros nas avaliações que lhes fazemos! Por que penso assim? As razões são estas:
1 — Porque não damos às crianças o direito de errar, como elas precisam de o fazer para aprenderem. Errar porque se está, felizmente, com a “cabeça no ar”. Errar porque nunca é simples passar do que se sente à ligação entre as imagens que se constroem e a abstracção que elas requerem - ou entre a linguagem e a matemática, se preferirem - aprendendo-se, assim, a pensar. Parece-me que queremos avaliá-las e esperamos que não errem. Aliás, é estranho que haja uma escola que se preocupe a ensinar, vezes demais, à margem do imaginar e do pensar. E que não acarinhe o erro. Errar é um patrimônio da Humanidade! Crianças que não erram e que esperam que a escola lhes tire mais dúvidas do que aquelas que lhes coloca ganham uma espécie imunodeficiência adquirida ao erro e à dor. Tornam-se vaidosas em vez de serem humildes. “Competitivas” porque a escola promove de menos a cooperação com a qual se pensa sempre mais longe. E presunçosas (e inseguras, portanto) quando, diante do conhecimento, deviam ser, simplesmente, rebeldes. Crianças assim, por mais que tenham um potencial fantástico, pensam pior. E quem não pensa pode conquistar bons resultados escolares, sem dúvida. Porque repete mas não re-cria. E não aprende!
2 — Porque as avaliações tomam em conta os desempenhos das crianças mas, muito raramente, as performances dos professores e do próprio sistema educativo. Não me interpretem mal, por favor. Os professores são preciosíssimos! Contudo, vivem engolidos numa engrenagem na qual a burocracia e a tecnocracia atropelam a paixão e a arte de ensinar. Parece que quem constrói os programas, quem pensa os manuais e as metodologias educativas, quem ensina, quem dirige as escolas e quem gere a vida das crianças (os pais, portanto) não se coloca tantas vezes nessa “equação” de avaliações e de notas, como devia. É mais simples que se chegue a um dilema do gênero: as crianças ou são inteligentes ou não são.
3 — Como pode uma escola avaliar se priveligia, quase sempre, as respostas às perguntas (às imensas perguntas) que não se colocam? Perguntar permite que, de um todo mais ou menos indiferenciado, se possa discernir o indispensável do colateral e do supérfluo. Ora, sem se perguntar não se colocam hipóteses, nem se articula o “sente, discorre e faz” com que se pensa. Como pode uma escola silenciosa ser amiga da avaliação? Perguntar já é compreender. Logo, se uma criança não pergunta, livremente, compreende pior. Pode, pois, a avaliação ser justa e honesta quando a escola avalia porém não escuta?
4 — É altura da escola ir do uniformizar (que vai do modo como exige que elas se formatem a um pensamento à forma como exige que elas se vistam) ao singularizar. Uma escola com inequívocos déficits de atenção em relação à singularidade é uma escola que avalia, entretanto não aprende.
"Não damos às crianças o direito de errar. Errar porque se está, felizmente, com a 'cabeça no ar'"
5 — “Turmas de primeira” e “turmas de segunda”, “disciplinas de primeira” e “disciplinas de segunda”, “áreas de estudo de primeira” e “áreas de estudo de segunda”, “alunos de primeira” e “alunos de segunda” são formas estranhas com as quais todos temos convivido. Uma escola assim transforma-se (sem se dar conta, suponho eu) numa escola amiga do apartheid. Ora, uma escola amiga do apartheid avalia. Mas não se põe em dúvida. Nem educa.
6 — Uma escola que acha o brincar, o jogo e o recreio, tal como a educação física ou as disciplinas expressivas como assessórios, mas nunca como instrumentos indispensáveis à “estrutura esquelética” da aprendizagem, parece não entender que ao brincar, ao jogar e ao expressar-se uma criança põe problemas, discorre sobre eles e aprende a resolvê-los. E aprende, sobretudo, formas, tendencialmente, mais simples de resolver incógnitas, progressivamente, mais complexas. Sendo assim, uma escola alarmada com o brincar é uma escola assustada com a liberdade. E uma escola que acarinha, em especial, o exclusivo e atropela o plural e o inclusivo. Uma escola que avalia, sem dúvida. Mas que não aprende.
7 — Eu acho que andamos todos na vertigem da vaidade a imaginar que as crianças são muitíssimo mais inteligentes que os seus pais; o que é mentira. Estamos a querer que sejam jovens tecnocratas de fraldas, aos 4; jovens tecnocratas de mochila, aos 12; mestres aos 22; e ídolos antes dos 30. É de tal forma assim, que há muitas crianças que não brincam, não têm vida, não acarinham a família, os amigos e os seus compromissos sociais, nem afagam os seus sonhos porque, em primeiro lugar, para os pais, está o estudar. Ora, quem estuda e não vive não aprende!
8 — Eu gosto que as crianças sejam avaliadas. Porque só assim descobrem os erros. E desse modo vão descobrindo que o futuro vai continuar a aceitar pessoas imperfeitas. Aliás, aceita, acarinha e é grato, cada vez mais, àqueles que trazem a singularidade, o amor pelo conhecimento e a paixão pela vida até aos outros. São esses que mudam o mundo. Que a escola mude com eles!