Algumas perguntas filosóficas possuem uma curiosa persistência, confrontando-nos mesmo nas mais insuspeitas situações. A recente polêmica (um tanto histriônica) em torno da campanha do Ministério dos Transportes – aquela que adverte: “Gente boa também mata” – é um exemplo da permanência desses difíceis problemas. A peça de propaganda não tem a devida clareza para fixar a mensagem central – não use celular enquanto dirige –, mas, talvez inadvertidamente, permite que se levantem duas questões: devemos ser julgados e avaliados moralmente pela nossa conduta ou pelo resultado das nossas ações? E a constituição do nosso caráter está em nosso completo controle?
Nossa reação imediata é julgar as pessoas pelos resultados das suas condutas, especialmente porque essas são, muitas vezes, o melhor espelho da sua personalidade. Que João tenha cometido um ato vil é o melhor indicativo que seu caráter tem a mesma mácula. O objetivo da campanha de trânsito foi mostrar que nem sempre esse é o caso: há situações em que as consequências de uma ação são terríveis, mas isso não necessariamente significa que o responsável é moralmente abjeto – o resultado, afinal, pode ter sido obra não de uma intenção deliberada em causar um mal, mas de um descuido, no caso, checar o celular ao volante.
Ainda que nossa primeira reação seja julgar considerando o resultado, uma análise mais detida transfere o foco para a conduta. Afinal, se um dos objetivos da responsabilização é censurar o agente, é necessário analisar como ele agiu, não o que ele causou. Como ele agiu é algo que está ao seu controle, e ninguém pode ser responsabilizado por algo que não poderia controlar (se eu sou coagido fisicamente a fazer algo, diz o senso comum que eu não posso ser responsabilizado pelo que aconteceu). A isso os filósofos chamam de “princípio de controle”.
Mas será que nossa experiência moral reflete essa crença ou intuição moral tão cara a nós? Um exemplo famoso na literatura filosófica – um dilema cunhado pelo filósofo americano Thomas Nagel – pode causar alguma perplexidade. Digamos que um motorista esqueça de verificar o desgaste de seus freios e, por causa desse descuido, venha a atropelar uma criança que cruza seu caminho. Além da sua responsabilização criminal por homicídio culposo, ele mesmo se culpará, e será moralmente censurado pelo que fez. No entanto, caso a criança não tivesse cruzado seu caminho (e essa é, afinal, uma variável que ele não poderia controlar), o motorista não sofrerá com a culpa, não será responsabilizado criminalmente, e nem censurado moralmente. Ora, se o essencial para a responsabilização moral é a conduta do agente, como justificar tratamento tão discrepante para o motorista que não atropelou ninguém, muito embora tenha sido igualmente negligente?
"Se duas pessoas atiram para matar, mas apenas uma tem êxito, isso não deveria afetar nosso julgamento sobre cada uma delas"
Esse exemplo ilustra que há uma contradição profunda entre nossa crença moral de que só podemos ser responsabilizados por aquilo que está ao nosso controle e nossa experiência moral de responsabilizar as pessoas mesmo por resultados incontroláveis. Se os dois motoristas foram igualmente descuidados, ambos deveriam ser moralmente avaliados com a mesma severidade. Da forma similar, se duas pessoas atiram para matar, mas apenas uma tem êxito, isso não deveria afetar nosso julgamento sobre cada uma delas.
Mas o fato é que afeta. Adam Smith, filósofo escocês mais conhecido por seu clássico A Riqueza das Nações, comenta como abstratamente endossamos prontamente o princípio de controle, uma vez que ele parece racional e razoável – mas, assim que nos deparamos com um caso concreto, nossa avaliação moral prontamente o afasta, ou pelo menos o mitiga, e as más ou boas consequências advindas da falta de controle do agente ou da fortuna entram na avaliação moral. Poderia ser dito que essas avaliações distintas são irracionais: se, após deliberação, concluirmos que os dois motoristas e os dois homicidas devem ser avaliados da mesma forma, então qualquer sentimento moral em contrário deve ser afastado. É certo que a reflexão filosófica cumpre muitas vezes exatamente esse papel de crítica ou refinamento das nossas intuições e crenças morais. No entanto, é no mínimo problemático que ela demande o abandono de crenças arraigadas que definem de forma tão fundamental nossa identidade e nossa relação com o mundo. Por acaso julgaríamos aceitável que o motorista que atropelou a criança simplesmente desse de ombros diante de seu ato – pois, afinal, ele nunca teve controle sobre pedestres que cruzam seu caminho? Certamente há algo de moralmente repugnante em agir assim, embora o esclarecimento do que exatamente causa essa reação seja uma pergunta que vem desafiando filósofos há muito tempo. Uma explicação plausível é que nossa personalidade é constituída não apenas por aquilo que intencionalmente fazemos, mas por tudo que causamos – por todo resultado ao qual estamos, de alguma forma, causalmente conectados. Édipo, o herói trágico da peça de Sófocles, descobre, para seu infortúnio, que havia matado o pai e se casado com a mãe – e, para ele, não foi consolo algum saber que agiu assim involuntariamente. Édipo, e mais ninguém, fez aquilo, e isso foi suficiente para destruir a sua vida.
Em torno dessa controvérsia, surgiu o chamado “problema da sorte moral”. Introduzido na literatura filosófica na década de 70, num famoso embate entre duas figuras centrais do pensamento moral da segunda metade do século, Bernard Williams e Thomas Nagel, o tópico rapidamente tornou-se um daqueles problemas clássicos em torno do qual as discussões futuras passam a orbitar. Poderíamos compreendê-lo como mais um capítulo na história das ideias sobre uma questão que fascina o ser humano desde sempre: o papel da sorte na experiência humana – tema central desde a época da tragédia grega, passando pelo Renascimento e pela obsessão moderna por controle.
Gente boa também mata, adverte a campanha. Até que ponto a “gente boa” é responsável por esse resultado indesejado, e até que ponto este irá afetar nossa avaliação sobre sua bondade, no entanto, são perguntas que não cabem num cartaz. Elas desafiam nossas concepções mais básicas sobre nós mesmos, nossos atos e os reflexos deles sobre os outros e sobre o nosso caráter. Confrontar-se continuamente com elas é o que torna nossa vida tipicamente humana.