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Candidaturas avulsas: remédio ou veneno?

Mesmo que os partidos estejam de fato tornando-se obsoletos, isso não significa que saibamos o que fazer sem eles, ou que a democracia esteja funcionando melhor. Não está.

Por Bruno P. W. Reis*

query_builder 6 nov 2017, 20h30

*Bruno P. W. Reis é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

Prosperou entre nós, nos últimos tempos, a tese da viabilização de candidaturas avulsas, ativamente promovida pela Rede, sob respaldo público de sua principal liderança, Marina Silva, e recebida com simpatia mesmo no Supremo Tribunal Federal, com o endosso da nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge.

De saída, cabe registrar que essa não é matéria doutrinária. Há sistemas eleitorais que, pelo menos em tese, poderiam prescindir inteiramente dos partidos em sua organização interna e na atribuição de cadeiras. São os chamados sistemas majoritários, que simplesmente elegem os nomes mais votados em dado distrito, e que podem ser exemplificados tanto no majoritário uninominal anglo-saxão (que tendemos a chamar de distrital) quanto na famigerada excentricidade que temos cogitado adotar sob o nome de distritão. Estes são sistemas que não supõem partidos na apuração de seu resultado, e que, portanto, poderiam em princípio existir e operar de maneira inteiramente independente da existência e organização dos partidos políticos.

Antes que os mais afoitos se apressem a festejar esse atributo, porém, note-se a ironia de que tais sistemas eleitorais abrigam alguns dos mais robustos e inamovíveis sistemas partidários do mundo. Um exemplo é a multissecular polarização Tories/Whigs (antigos partidos conservador e liberal, extintos no século XIX) na Grã-Bretanha, substituída há quase um século pela atual Tories/Labour (atuais partidos Conservador e Trabalhista); outro, o inexpugnável duopólio americano entre republicanos e democratas, que já dura 150 anos. Embora nem a Constituição dos Estados Unidos nem seu sistema eleitoral supusessem partidos, eles emergiram de forma espontânea da disputa política, não no Congresso, mas no interior do gabinete no primeiro mandato de George Washington, do choque entre o secretário do Tesouro, Alexander Hamilton (primeiro boss do efêmero partido federalista) e o secretário de Estado Thomas Jefferson (que se tornaria patrono do partido Democrata-Republicano, berço do atual Democrata). Uma vez fixados os blocos, distritos com poucas cadeiras tornam bem difícil a entrada de novos grupos na disputa, cristalizando o jogo do poder em poucas, grandes organizações.

Foi por isso que, na segunda metade do século XIX, uma vasta campanha civil, com o apoio de ícones liberais como John Stuart Mill, bateu-se na Europa pela representação proporcional. Ela foi afinal adotada de modo pioneiro na Bélgica, em 1899, recebida como uma vitória da sociedade civil sobre a elite política, e rapidamente se disseminou pelo continente nas três décadas seguintes. Nesse sistema os partidos são, afinal, institucionalmente oficializados: ao distribuir as cadeiras segundo a votação de cada partido a partir de listas de candidaturas preordenadas, a representação proporcional supõe e requer sua existência e regulação, e consagra os partidos políticos como peça integrante do kit operacional da democracia eleitoral moderna. A partir dali, emerge o multipartidarismo moderado que vai conformar a política de coalizões parlamentares típica do século XX.

No Brasil, a representação proporcional é abraçada pelos revolucionários de 1930, ansiosos por se livrarem do modelo distrital que favorecia o proverbial coronelismo da República Velha, com seus currais eleitorais e suas eleições "a bico de pena". Embaraçados pela existência frequente de partidos únicos estaduais, evitam as listas preordenadas e se afastam da ortodoxia quanto ao proporcionalismo partidário com nossas chamadas listas abertas, não ordenadas, de candidaturas a ser conduzidas individualmente. Junte-se a isso o grande número de cadeiras frequentemente em disputa em nossos distritos estaduais ou municipais, mais as coligações posteriormente facultadas nessa disputa, e ainda o crescimento vertiginoso de nosso eleitorado ao longo do século XX, e terminamos por configurar, ao longo dos últimos oitenta anos, um sistema bastante peculiar de constituição de nossos plenários legislativos, seja em âmbito federal, estadual ou municipal: centenas de candidaturas individuais, disputando dezenas de cadeiras junto a milhões de eleitores no interior de um só distrito são um cenário peculiar ao Brasil.

Câmara dos Deputados (Adriano Machado/Reuters)

Esse cenário atípico tendeu a favorecer, no longo prazo, uma proliferação igualmente atípica de partidos, e hoje – em razão também de decisões judiciais contraproducentes na última década – exibimos os plenários legislativos mais fragmentados do planeta. Ademais, com a proliferação de candidaturas individuais em jurisdições tão vastas, produziu-se também um campo de fiscalização difícil e altamente inflacionário quanto a suas necessidades de financiamento. Acrescente-se a isso a legislação esdrúxula, única no mundo, que limita doações privadas proporcionalmente à renda do doador, e terminamos por produzir um ambiente eleitoral financeiramente viciado, que favoreceu por décadas candidaturas aptas a arrecadar somas milionárias a partir de poucos, imensos doadores.

Num cenário como esse, pode até ser compreensível certa exasperação pública contra os partidos, mas autorizar candidaturas avulsas talvez seja a pior coisa que poderíamos fazer, agravando cada um dos males vigentes na conjuntura. Mais ou menos como dinamitarmos o dique de uma grande barragem, por termos constatado um grande vazamento.

No que diz respeito ao mercado eleitoral, com os 27 partidos que hoje se fazem representar na Câmara dos Deputados e ainda o grande número de candidaturas individuais em cada estado, o que precisamos desesperadamente é reconcentrar a demanda por financiamento eleitoral, e não pulverizá-la ainda mais. No que toca à constituição das necessárias maiorias governamentais, ela já é onerosa demais (em todos os sentidos) com a fragmentação atual, e com certeza seu custo aumentaria ainda mais se juntássemos aos plenários um punhado de representantes que não se orientassem por qualquer atuação parlamentar coletiva, mas apenas por suas conveniências estratégicas individuais.

Talvez haja quem queira logo radicalizar e abandonar a representação proporcional, fazendo nossa política regredir ao majoritarismo distrital. Nesse caso, sim, a dinâmica esperada seria outra. Mas iríamos rumo ao extremo oposto, cristalizando um sistema de poucos partidos fortes e elevadas barreiras à entrada de novos atores. Queremos fazer esse favor ao PMDB, que é claramente o partido mais capilarizado na política municipal pelo interior do Brasil? Quereremos realmente um oligopólio partidário à americana?

A identificação do eleitorado com os partidos está em queda no mundo todo, talvez em virtude de um efeito combinado da viabilização de certo ativismo virtual na internet, de um lado, com a crescente impotência de governos nacionais sob a globalização, do outro. Mas, mesmo que os partidos estejam de fato tornando-se obsoletos, isso não significa que saibamos o que fazer sem eles, ou que a democracia esteja funcionando melhor com os partidos enfraquecidos. Não está.

Como partidos são mediadores entre organizações civis e as decisões políticas e, nessa condição, tornam-se os principais corretores da barganha política junto ao público, sua mera existência faz deles atratores de um esforço por atores interessados em cooptá-los. Ou seja, eles sempre, por definição, serão alvo de esforços sistemáticos por corruptores economicamente poderosos. Como isso fatalmente os corromperá, em alguma medida, cria-se a ilusão de que estaríamos melhor sem eles. Nada é tão simples, porém. Na falta de partidos fortes, a influência econômica se dá de maneira muito mais desimpedida mediante ação direta de interesses econômicos junto às esferas decisórias burocráticas. Sem partidos, ou com partidos fracos, fica bem mais barato comprar decisões políticas. Sob uma aparente eficiência, oculta-se – na ausência dos partidos – um sistema político estruturalmente muito mais corrupto. Apenas as denúncias serão mais raras...

Qualquer que seja o tipo de organização que venha porventura a ocupar o lugar dos partidos, ela será necessariamente alvo do mesmo esforço por corruptores ativos e terminará fatalmente corrompida, em maior ou menor medida. É impossível exercer a função sem pagar esse preço. Independentemente do tamanho do estado, o sistema político é, por definição, o árbitro e mediador último do conflito de interesses na sociedade. Imaginar que essa disputa, mesmo quando pacificada, poderá se dar nos estritos limites da persuasão intelectual apoiada em princípios é claramente irrealista – e potencialmente autoritário. Se tudo correr bem, acordos políticos, ajustes negociados entre interesses contrários deverão ser feitos, e haverá melhor controle da população sobre o teor desses acordos se partidos políticos forem mediadores relevantes no processo. Nosso problema é antes a fraqueza que a força dessa mediação partidária. Nada ganharemos ao enfraquecê-la ainda mais.