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Projeto ‘anticrime’ de Moro é superficial e decepcionante

Sem ter incorporado o espírito do governo Bolsonaro, proposta legislativa pode ser considerada light

Por Guilherme de Souza Nucci*

query_builder 8 fev 2019, 17h00

*Guilherme de Souza Nucci é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, livre-docente em Direito Penal (PUC-SP); doutor e mestre em Processo Penal (PUC-SP).

Em situação tão delicada, como a que vive a sociedade brasileira em inúmeras cidades, com violência excessiva e insegurança cotidiana, emerge o projeto proposto pelo ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) para “o combate ao crime”, em termos simplórios e duvidosos. Há, por certo, pontos positivos. No entanto, aguardava-se um projeto tão bem elaborado, por equipes de nível altamente técnico, que precisaria preencher basicamente mais de 90% de acerto. E isto está distante de ocorrer.

Depois de tomar conhecimento da integralidade do projeto, termino decepcionado por vários ângulos: a) falta de um verdadeiro recrudescimento punitivo (vê-se uma ampla superficialidade); b) existência de várias propostas dependentes do aval do Supremo Tribunal Federal (STF), pois lidam com temas constitucionais; c) ausência de qualquer indicativo de que as vagas nos presídios vão aumentar e as equipes técnicas nesses presídios também vão crescer; d) alterações legislativas que, embora interessantes, são supérfluas para o combate efetivo ao crime.

A nossa proposta é avaliar os principais pontos do projeto de Moro.

Uma das propostas é modificar o Código de Processo Penal (CPP), incluindo o artigo 617-A. Significa que, proferindo condenação em 2º grau, pode-se mandar prender o réu, mesmo sem o término de interposição de outros recursos. Há um açodamento ou até um mecanismo de pressão junto ao STF, porque se designou o dia 10 de abril para decidir (espera-se) de uma vez por todas se o réu condenado em 2º grau pode começar a cumprir pena, antes de qualquer outro recurso especial ou extraordinário transitar em julgado. É uma loteria essa proposição. Depende do veredicto do dia 10 de abril. Se o STF vedar a prisão antes do trânsito em julgado, não alterando o conceito de trânsito em julgado, essas alterações seriam inconstitucionais. Caso o STF aprove a prisão após decisão de 2º grau, a modificação legislativa apenas adaptaria a lei à jurisprudência.

(Luiz Silveira/Agência CNJ)

Prender o sujeito condenado logo após a condenação pelo Júri, em homenagem à soberania dos veredictos, esbarra na avaliação do STF no sentido de ser (ou não) possível executar a pena antes do trânsito em julgado. Será indispensável a posição do Plenário do STF. Diante disso, esta proposta é duvidosa.

Algumas reformas poderiam gerar discussões profundas em termos criminais. No entanto, analisando-se o projeto de Moro, vê-se a superficialidade com que foram propostas as alterações legislativas.

O artigo 23 do Código Penal fixa as excludentes de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal). Menciona o atual parágrafo único do artigo 23 que o agente pode responder por excesso doloso ou culposo. A reforma de Moro propõe incluir mais um parágrafo, dando conta de uma redução de pena (ou não aplicação) a quem agir, no excesso, por medo, surpresa ou violenta emoção. A opção é muito antiquada. Quem assim agir pode ser absolvido por excesso exculpante e não receber pena diminuída da metade. Em verdade, piorou-se a situação do réu.

Não bastasse, sob a bandeira de proteger policiais em confronto com bandidos, acresceram-se dois incisos ao parágrafo único do artigo 25 do Código Penal. Esses dois incisos não resolvem absolutamente nada. Falta técnica. A situação descrita no inciso I aponta que o agente policial pode reagir quando houver injusta e iminente agressão. Banal a inclusão, já constante do artigo 25, caput. No inciso II, diz-se em legítima defesa o policial que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crime. Alguém questionava isso antes? As propostas legislativas não mudam nada no panorama da análise da legítima defesa. Isto significa que os policiais continuariam submetidos ao critério da legítima defesa do mesmo modo de sempre.

As mudanças no artigo 33 do Código Penal, no sentido de se determinar o regime inicial fechado para condenado reincidente ou criminoso habitual já foi julgada pelo Plenário do STF e considerada inconstitucional, em face do princípio da individualização da pena. Por que reiterar esse tema em reforma legislativa? Seria, então, aprovar novas leis e exercer pressão sobre o STF para mudar de posição?

Sobre endurecimento de penas, altera-se o artigo 59, permitindo ao julgador fixar “período mínimo” de cumprimento de pena no regime inicial fechado ou semiaberto antes da progressão. Ora, qual período mínimo? Não há, no Brasil, pena indeterminada, pois se respeita o princípio da legalidade. É vedado ao juiz fixar esse tal período mínimo sem base expressa na lei.

"Projeto de Moro para ‘combater o crime’ é carente de ideias novas, repleto de proposições já julgadas pelo STF, bem como várias outras alterações que são simplesmente superficiais"

A progressão para condenados por crimes hediondos e equiparados seria realizada ao atingir 3/5 da pena. Parece-nos um recrudescimento constitucionalmente admissível. A progressão ficaria ao critério do exame criminológico, o que nos parece viável. Seriam pontos positivos.

Veda-se, no projeto de Moro, a saída temporária no regime fechado. Estranho. Não há saída temporária nesse regime. O que existe é a permissão de saída, para comparecer a velório ou enterro ou para tratamento médico. Uma contradição.

Busca-se proibir (agora, sim, de forma inédita) a saída temporária no regime semiaberto. Sabe-se que o índice de frustração dessas saídas temporárias em regime semiaberto é mínimo, ou seja, poucos saem e fogem. A maioria sai e volta. Isto não é o cerne de segurança pública.

Na Lei 12.850/2013, proíbe-se o condenado por integrar organização criminosa a obter progressão de regime ou obter livramento condicional. Esta é uma proposta francamente oposta à jurisprudência do STF, que permite a progressão para qualquer condenado, em homenagem ao princípio constitucional da individualização da pena. Por que propor algo francamente contrário à visão do STF?

Na parte relativa à alteração da Lei 12.850/2013, o artigo 1º, § 1º, inciso III, traz uma impropriedade técnica. Menciona exemplos de quadrilhas no texto legal (o que nos parece inadequado): “como o Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias ou outras associações”. Não se deve mencionar no texto legal nomes dados a grupos criminosos. É um perigo incalculável reconhecê-los por força de lei.

Emerge ainda do projeto a cópia do sistema norte-americano. Se o réu confessa, recebe a pena e pronto. Simples e rápido. A ideia aqui é copiar o sistema conhecido como plea bargain. Mas estamos no Brasil e temos normas próprias a nos reger, especialmente as constitucionais, como o artigo 98 da Constituição, que já prevê a criação de juizados especiais para o julgamento de infrações penais de menor potencial ofensivo, onde é possível a transação. Fora desse quadro, todo réu, para ser condenado, tem direito inafastável à ampla defesa e ao contraditório, formando o devido processo legal.

O sistema adotado pela Constituição Federal permite a transação (confissão e recebimento de pena) ao contexto das infrações de até dois anos de pena máxima em abstrato. Com o sistema proposto, a pena máxima, para transação, subiria para quantidades inferiores a quatro anos.

No entanto, já tramita no Congresso Nacional o aumento da infração de menor potencial ofensivo para cinco anos (como pena máxima). Portanto, o projeto é menos eficaz.

Conclusão

O projeto de Moro para “combater o crime” é carente de ideias novas, repleto de proposições já julgadas pelo STF, bem como várias outras alterações que são simplesmente superficiais para o combate à criminalidade violenta da atualidade.

Para um projeto de lei, voltado à segurança pública, advindo do governo Bolsonaro, o projeto é decepcionante. No entanto, pode-se dizer que, não tendo incorporado, realmente, o espírito do novo governo, o projeto é light. É possível debatê-lo e até aprová-lo sem grandes confrontos com a Constituição Federal. Para fazer isso, os parlamentares devem separar as questões pertinentes aos julgamentos do STF (já realizados e a realizar em breve tempo). Retirando os temas constitucionais, se aprovarem o referido projeto, não invadirão a convicção do STF, mas, em compensação, aprovarão medidas supérfluas para o combate efetivo ao crime no Brasil.

Melhor seria se o Ministério da Justiça, aproveitando a onda positiva de apoio popular, que cerca os primeiros meses de governo, promovesse a reforma geral de leis antigas, como o Código Penal (1940/1984), Código de Processo Penal (1941) e Lei de Execução Penal (1984).