É inconstitucional e grave a insegurança jurídica criada pelo Congresso Nacional quando suas duas casas, Câmara e Senado, colocam em votação e aprovam, no mesmo dia, a medida provisória 832 - que define o tabelamento de preços mínimos para o frete no Brasil. Não é possível rasgar a Constituição Federal. O assunto jamais poderia ter sido apreciado e votado no Congresso Nacional em razão de vedação expressa na Constituição, que determina que o transporte terrestre não pode ser regulamentado por medida provisória. Além de inconstitucional, o tabelamento de frete incentiva a formação de cartel no mercado de transporte de cargas.
Caso não se tivesse ignorado a Constituição Federal, o tema teria sido tratado não a toque de caixa como foi, mas como prescrito para assuntos dessa gravidade, que pressupõe a análise e maturação de projeto de lei no Congresso Nacional. Inclusive porque, atualmente, tramita em suas casas projeto de marco regulatório do transporte rodoviário de cargas, ao qual o tema diretamente se relaciona. Portanto, a medida provisória traz consigo a perversa consolidação da insegurança jurídica, com todas as suas graves consequências ao âmbito dos negócios e à imagem do país.
Ronaldo Silva/Futura Press/Folhapress
É certo que o governo ficou acuado. Também é certo que os valores de frete e custos de logística mereciam há muito tempo a atenção do Executivo e Legislativo. Contudo, revogar de supetão a lei da oferta e procura por Medida Provisória como no caso presente, além de ignorar a expressa vedação constitucional, viola o fundamento da liberdade de iniciativa, os princípios da livre concorrência e a proteção ao consumidor. Aliás, isso foi reconhecido há um mês em parecer exarado pelo Ministério da Fazenda ao oferecer subsídios sobre a adequação do tabelamento solicitados pelo STF, e há três anos explicitado pelo então ministro da Casa Civil quando houve similar paralisação de caminhoneiros, oportunidade em que o governo esclareceu se tratar o tabelamento de fretes de proposta inconstitucional.
A consequência fática já constatada diante do aumento de custos pelo tabelamento dos fretes é o aumento dos preços de produtos transportados, que serão suportados por todos os setores produtivos da economia, em detrimento do consumidor e da sociedade brasileira.
Urge que o projeto de marco regulatório do transporte rodoviário de cargas, respeitados todos os trâmites e prazos legais, seja apreciado e votado pelo Congresso Nacional. Caso contrário, o tabelamento imposto dessa forma inédita somente continuará a gerar incentivo à formação de cartéis, efetivos aumentos de preços e ainda mais insegurança jurídica.
"Como será amanhã, após esse grave precedente de retrocesso aos tempos dos pacotes econômicos, se outros setores da economia decidirem fazer greve e fechar estradas?"
O Supremo Tribunal Federal, certamente, dará a palavra final sobre o tema. Espera-se que o guardião da Constituição tenha todo o cuidado na preservação e respeito a suas expressas determinações, em especial quanto à utilização indevida de Medida Provisória para regulamentar o transporte terrestre. Mas enquanto o STF não se posiciona nas ações diretas de inconstitucionalidade impetradas contra o tabelamento de preços e suas graves consequências negativas, é fundamental que as empresas e o agronegócio brasileiro atuem, por meio de suas associações de classe, conjuntamente com a Agência Nacional de Transportes Terrestres, para discutir e minimizar os aspectos negativos dos excessos hoje vigentes – o que não implica o reconhecimento da constitucionalidade do próprio tabelamento de frete nem ignorar os reflexos.
Para harmonizar o conflito entre o preço do frete e o seu justo valor em uma economia de mercado, é fundamental que o Congresso Nacional interaja com a sociedade, ouvindo tanto o setor dos caminhoneiros quanto todos os demais que serão afetados pela regulamentação, que deverá ser votada no âmbito da discussão do marco regulatório do transporte rodoviário de cargas. Dessa forma, será possível encontrar meios de compensação ao excesso de oferta de serviço de transporte rodoviário, inclusive eventuais incentivos ou subsídios fiscais, em substituição à nociva tabela de preços mínimos de fretes.
O país não pode, afinal, ficar refém de um grupo de caminhoneiros. Como será amanhã, após esse grave precedente de retrocesso aos tempos dos pacotes econômicos, se outros setores da economia decidirem fazer greve e fechar estradas? Como fica a isonomia? É preciso lembrar que as manifestações de caminhoneiros como as que paralisaram o país no final de maio, já haviam sido enfrentadas por outros governos, que não afrontaram a Constituição brasileira para solucionar o conflito.
O desrespeito à Constituição Federal só agrava o contexto da grave crise institucional que vivemos. Legislativo e Executivo podem e devem encontrar soluções constitucionais para conflitos como o que se está vivenciando com o tabelamento do frete. Frente à solução inconstitucional implementada por governo e Legislativo, a expectativa é que o STF preserve as instituições democráticas, evitando o agravamento da crise atual e afastando o incentivo à formação de cartel conferido pela medida vigente.