Antonio Claudio Mariz de Oliveira só não foi ministro da Justiça no início do governo Temer porque não quis. Poderia ter elaborado declarações favoráveis à Lava Jato, elogiado a força-tarefa de Curitiba, dito que admira o juiz Sergio Moro, mas ele veio ao mundo sem o software da dissimulação. Com Mariz não tem jeito, não tem negociação. Diz o que pensa e sai debaixo. Os amigos sabem disso, os clientes sabem disso e os colegas de profissão também. Delação premiada? Tem arrepios, e diz na lata. Fotografia de réus na imprensa? Ódio. Procuradores dando entrevistas? Engulho. Prisão provisória à farta? Vontade de chutar a parede, o sofá e a porta.
Falando sobre prisão provisória ao site Consultor Jurídico tempos atrás, Mariz deixou claro seu ponto de vista: “Nenhum suspeito de assassinato, réu confesso, encontrado com a arma e próximo ao corpo da vítima, pode ser preso apenas pela morte. Ele pode aguardar em liberdade, porque prendê-lo pelo homicídio seria antecipação de mérito”, afirmou. “Teria que ser preso se estivesse subvertendo a ordem natural das coisas processuais, se interrogasse as testemunhas, por exemplo, porque poderia suborná-las ou ameaçá-las. Isso seria causa.” Alguma dúvida sobre a distância que separa suas convicções e as práticas que ganharam força no Poder Judiciário desde o mensalão? Alguma dúvida sobre a eletricidade que levaria à Esplanada se virasse ministro?
Michel Temer chegou a insistir. Procurou uma forma de contornar as resistências dos defensores da Lava Jato a Mariz, mas acabou desistindo. Pareceria provocação. E o governo não estava, como ainda não está, em condições de comprar briga, nenhuma briga. Pena que não tenha prosperado. Teria sido bem interessante vê-lo em ação. Mesmo longe do cargo, no entanto, permaneceu ao lado do presidente durante estes meses todos, na condição de amigo e advogado. E a proximidade acabou lhe custando um tiro. Um tiro disparado por um ex-cliente, o doleiro Lúcio Funaro. Em delação premiada, Funaro acusou Mariz de ter vazado ao presidente a notícia sigilosa de que pretendia colaborar com o Ministério Público, entregando nada mais, nada menos do que a cabeça de Temer.
Antônio Claudio Mariz de Oliveira (Sergio Lima/VEJA)
A acusação é gravíssima. A confidencialidade entre advogado mandatado e seu cliente é a regra básica da profissão. Os que conversam, o que combinam, morre ali. E o que sugere o doleiro? Que o advogado, que tem cinquenta anos de experiência, teria sido capaz de um gesto de traição inaceitável: informar o amigo presidente sobre a decisão que seu cliente tomou de delatar. Aliás, de delatar seu amigo. Funaro não apresenta provas do que diz, não conseguirá provar jamais , e é inconcebível imaginar alguém do porte de Mariz se sujeitando a um papel porco e inútil desses. Porco porque lhe comprometeria a carreira e a honra. Inútil porque Temer não teria o que fazer com essa informação. Aliás, como Funaro afirma em sua delação que isso aconteceu, dá para saber o que Temer fez com essa informação: nada, além de se ver às voltas com a segunda denúncia no Congresso Nacional, contendo as imputações selecionadas por Rodrigo Janot, com a ajuda do doleiro.
A referência sem provas a Mariz gerou uma onda de desagravos promovida por criminalistas de todo o Brasil, culminando com uma solenidade realizada na segunda-feira 9, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo. O dado curioso desse evento é que, montado para dar amparo a um colega, alguns dos advogados de defesa presentes se perderam em acusações. E acusações infundadas feitas à imprensa, que não tem nenhuma responsabilidade pela inclusão deste ou daquele nome entre os anexos da delação de Funaro ou de qualquer outra delação. Mas isso não importava muito naquele momento. A ideia era mesmo criticar a “mídia”. Um exemplo é a nota oficial da entidade sobre o episódio, em que “manifesta repúdio, igualmente, à ampla e leviana divulgação que a mídia deu a essa falsa notícia – em especial ao Jornal Nacional e a outros noticiários da Rede Globo de Televisão --, sem o elementar cuidado de apurar a veracidade dos fatos e a idoneidade de sua fonte”.
Como assim, “falsa notícia”? É absolutamente verdadeira a lamentável informação de que Mariz está citado na delação. Ninguém na imprensa inventou isso. Xingue-se o repórter, esculhambe-se o editor, fale-se mal do diretor de redação do jornal, da revista, do site, da rádio ou da TV, mas nada muda o fato inquestionável: Mariz foi colocado entre os nomes delatados pelo doleiro. Infelizmente, diga-se de passagem. Injustamente, ousaria acrescentar. Mas que está, está. Não por decisão de qualquer jornalista, e sim porque um integrante do Ministério Público assim resolveu. Ah, sim. E porque Luiz Edson Facchin, do Supremo Tribunal Federal, não mandou tirar. Não teria sido mais correto bater em Janot, bater em Facchin? O que os veículos de imprensa fizeram foi relatar a referência, considerada pertinente por duas autoridades da mais alta patente, no caso Janot e Facchin. Fato chato, mas fato. Notícia falsa seria escrever um texto afirmando que Mariz é culpado. Aí sim, caberia o protesto.
"Xingue-se o repórter, esculhambe-se o editor, fale-se mal do diretor de redação do jornal, da revista, do site, da rádio ou da TV, mas nada muda o fato inquestionável: Mariz foi colocado entre os nomes delatados pelo doleiro"
Em seu discurso de agradecimento aos desagravos, Mariz seguiu o tom da nota e sentou a pua. E, bem ao seu estilo, falou de peito aberto. Acusou a imprensa de ser “o arauto dessa conduta punitiva”, criticou a “falta de limite e peso”, afirmou que “não se pode soltar a informação a esmo e correr atrás da veracidade depois”, e disse que “a mídia tem obrigação com a veracidade”. Como foram proferidas num momento de forte emoção, deve-se dar às suas palavras o devido desconto. Acostumado a defender os outros, é a primeira vez que se vê na desconfortável posição de lutar pela própria inocência. E talvez por isso tenha se excedido. Talvez por isso tenha caído na cilada de se defender de um ataque injusto com outro ataque injusto.
Hoje, passados alguns dias, quem sabe Mariz já tenha percebido que pesou a mão. Primeiro ao falar da “imprensa” ou da “mídia”, assim, de forma coletiva, como se existisse uma estrutura organizacional que tomasse decisões em bloco. O que existe são apenas veículos que concorrem uns contra os outros e não combinam nem compartilham pautas, manchetes, títulos ou fotografias. Outra coisa que talvez já tenha percebido é que os repórteres recebem informações a todo instante. Cabe a eles avaliar o que é e o que não é notícia. Informações que envolvam o presidente da República e seu advogado são candidatíssimas à categoria de notícia. Era notícia a possível ida de Mariz ao Ministério da Justiça. É notícia a maldita referência a ele feita pelo delator reincidente.
Os jornalistas não são infalíveis. Como não são infalíveis os médicos, os pilotos de avião, os paraquedistas, os policiais, os chefs de cozinha, os malabaristas os advogados, os promotores, os juízes, os políticos. Todos erram. Não é necessário muito esforço para achar erros nos veículos de imprensa. Fosse esse um caso de erro jornalístico, seguramente Mariz mereceria um pedido de desculpas e um espaço para publicar a sua verdade. Mas não se trata disso. A imprensa noticiou um fato real. O trecho existe, foi dito por Funaro e, após a homologação, deixou de ser uma pilha de papéis para se tornar um documento.
A citação a Mariz, breve e sem detalhes, aponta para um óbvio caso de açodamento dos responsáveis pela celebração do acordo de colaboração. Se quisessem, os procuradores poderiam exigir mais carne em vez de aceitar mais vento. Até porque sabem que a imputação acabará derrubada nos tribunais por falta de materialidade, e têm consciência do estrago reputacional que provocam. Mas esta é uma interpretação entre tantas interpretações possíveis sobre a inclusão do nome do advogado. Friamente, no entanto, resta o fato objetivo: Mariz está lá. A notícia poderia ser publicada com referências à flacidez da acusação. Com comentários sobre o fato de o doleiro não exibir nada que sustente sua suspeita. Mas poderia também ser publicada da maneira como saiu na maior parte dos veículos, de forma seca e objetiva.
O advogado se irritou profundamente com o vazamento da delação, o que é compreensível. Desde o começo da Lava Jato essa tem sido uma prática adotada, ora por um lado, ora por outro. Há vazamentos de responsabilidade de integrantes do poder público, há outros promovidos por advogados de defesa. Tudo depende da estratégia de comunicação de cada lado. Novamente a imprensa não pode ser culpada de nada. O voto de sigilo é feito pelo detentor da informação. Cabe a ele, portanto, manter de pé o compromisso contratual com a confidencialidade. Já virou piada ver ordens de investigação de vazamentos assinadas por quem o viabilizou. Passar a responsabilidade de preservação do segredo de Justiça aos repórteres é uma atitude conveniente aos operadores do Direito.
O jornalista está na ponta oposta da discussão. Quando vai atrás de uma fonte, quer notícia. E notícia queima na mão. Tem de publicar. Não dá para guardar. A certa altura de seu discurso, Mariz perguntou: “Por que entendem os jornalistas que o direito à informação é ilimitado?”. A pergunta é boa. O jornalista não tem direito algum à informação. Tem apenas a obrigação profissional de correr atrás dela. Quem tem direito à informação é a sociedade. A mesma sociedade que tem o direito à privacidade, direito ao devido processo legal, direito à ampla defesa. O convívio harmonioso desses direitos, que muitas vezes se chocam, é o grande desafio da democracia.