/

Escolhendo errado as armas do combate à violência

Rastrear a origem, fechar fontes de desvios, identificar e retirar de circulação os grandes fornecedores de armas e munições são as receitas para reduzir os alarmantes níveis de violência armada do país e sanar a sensação de insegurança da população brasileira

Por Bruno Langeani e Ivan Marques*

query_builder 21 jan 2019, 17h45

*Bruno Langeani é bacharel em relações internacionais e direito e gerente do Instituto Sou da Paz. Ivan Marques é advogado, mestre em relações internacionais e direitos humanos, e diretor executivo do Instituto Sou da Paz

O debate sobre armas de fogo voltou à tona no Brasil. Apesar de já durar ao menos vinte anos, a novidade é o empenho do governo federal em facilitar o máximo possível a compra de armas no país e avançar para permitir que pessoas andem armadas nas ruas.

O decreto, publicado pelo presidente em tempo recorde – quinze dias após a posse –, busca, de forma proposital, definir um critério de necessidade (requisito da lei para os interessados em ter arma) que não barrasse nenhum estado. Ou seja, um não critério, o que contraria o espírito da lei e já está sendo contestado judicialmente.

Outro ponto muito preocupante é a ampliação do prazo de renovação e, portanto, de comprovação de que a pessoa continua em condições de manusear a arma de fogo (com testes técnicos, psicológicos e atestado de antecedentes) para dez anos. A validade da habilitação para dirigir veículos (que proporcionalmente mata muito menos que armas) é de cinco anos, com prazo inferior para pessoas idosas. O cuidado com testes de visão a cada cinco anos é requisito – afinal, ninguém ganha com pessoas dirigindo automóveis sem conseguir enxergar.

Armas e munições são vistas em clube de tiro localizado em São Paulo (SP) - 15/01/2019 (Miguel Schincariol/AFP)

Revalidar automaticamente os outros registros prévios ao decreto faz com que algumas pessoas fiquem até quinze anos sem refazer o teste psicológico ou provar que não tem antecedentes. Com uma canetada também autorizou até quatro armas para cada cidadão, sem a necessidade de justificativa (como possuir quatro casas, por exemplo).

O Brasil ultrapassou a marca de 63.000 mortes violentas. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 70% delas são cometidas com arma de fogo, enquanto a média mundial é de 41%.. Perante esses dados, fortalecer políticas de controle responsável das armas de fogo e munições não deveria ser objeto de disputa no país.

É compreensível que, diante do aumento da violência e do medo, cresça a demanda por compra de armas. Não podemos ignorar, no entanto, que comprovadamente ter uma arma não contribui para a defesa das pessoas e de suas famílias. Pesquisa do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), realizada quando era permitido andar armado no Brasil, mostra que sete em cada dez pessoas que reagiram armadas a um roubo tomaram um tiro. Indica também que o número de vítimas aumenta quando alguém reage armado. A decisão de ter uma arma em casa ou andar armado não tem impacto estritamente individual.

No campo coletivo, ainda que você nunca tenha pensado em adquirir um revólver, a política de controle de armas lhe causa impacto diretamente. Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou o seguinte dado: para cada 1% de aumento nas armas em circulação, os homicídios aumentam 2%.

Ao obrigar os interessados na compra a cumprirem alguns requisitos (apresentar atestados psicológico e técnico, e checar antecedentes criminais periodicamente, por exemplo) a Lei 10.826 (Estatuto do Desarmamento) procurou reduzir esses riscos individuais e coletivos. Além disso, trouxe importantes ferramentas para o trabalho da polícia, criou a tipificação do crime de tráfico internacional de armas, coibiu o mau uso (disparos imotivados ou omissão na guarda da arma) e nacionalizou os bancos de registros, permitindo que um policial de São Paulo possa rastrear uma arma apreendida e descobrir seu dono registrado em outro estado.

Vale esclarecer alguns mitos que continuam sendo disseminados. O Estatuto não obrigou a população a se desarmar. Ele criou um canal de entrega voluntária que garante uma indenização e a destruição da arma a quem quiser se desfazer dela. Às pessoas que desejarem manter suas armas, foi oferecido um longo período de anistia, incentivando que as armas fossem para a legalidade.

O Estatuto tampouco proibiu a compra de arma para a defesa pessoal. Dados oficiais da Polícia Federal informam que, só nos últimos três anos, 101.886 novas armas foram registradas por civis. Em vários contextos, como o de pessoas que moram em sítios distantes de unidades policiais, a compra é justificável e vem sendo autorizada aos requerentes.

Mas então o que falta para que o país consiga retirar mais armas ilegais de circulação e gerar mais segurança?

"O Brasil ultrapassou a marca de 63.000 mortes violentas. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 70% delas são cometidas com arma de fogo, enquanto a média mundial é de 41%. Perante esses dados, fortalecer políticas de controle responsável das armas de fogo e munições não deveria ser objeto de disputa no país."

Para traçar a melhor estratégia de retirada de armas do crime é preciso conhecer seu perfil. No Brasil há dois grupos de armas de características bastante distintas. A maior parte, aproximadamente oito e em cada dez armas, são curtas, revólveres e pistolas, em sua maioria de calibre permitido, fabricação nacional, antigas e desviadas do mercado legal. É essa a arma do crime comum, usada na maioria dos roubos e homicídios que impactam nossa população.

O outro grupo, menor, mas não menos importante, é das armas de maior poder de fogo, fuzis, submetralhadoras, muitas automáticas e, majoritariamente, de calibres restritos, fabricadas nos Estados Unidos ou no Leste Europeu e traficadas ilegalmente para o Brasil. Perfis distintos demandam estratégias distintas.

Já existem boas práticas que poderiam ser amplificadas. O Centro de Rastreamento de Armas da Polícia Federal rastreou quase 10.000 armas entre 2016 e 2017 e estabeleceu uma parceria com a agência de controle de armas do governo dos Estados Unidos que tem permitido maior cooperação e rapidez na identificação e no combate ao tráfico ilícito internacional. O volume de armas rastreadas ainda é tímido frente ao total apreendido no país, mas merece comemoração se representar uma tendência de crescimento, visto que no biênio anterior foram rastreadas cinco vezes menos armas.

Outro ponto de destaque são as recentes ações da Polícia Rodoviária Federal que, com uso de sistemas de detecção e alertas inteligentes que permitem uma seleção mais eficiente nas abordagens a veículos, têm resultado em apreensões significativas, principalmente no Estado do Rio de Janeiro e arredores. Ainda no Rio, a iniciativa estadual da Secretaria de Segurança de recriar uma delegacia especializada em armas (DESARME) tem gerado importantes apreensões e, principalmente, a identificação de grandes traficantes e sua retirada de circulação.

Iniciativas como essas precisam de mais apoio e disseminação. É fundamental que estados cumpram seu papel de rastrear as armas nacionais e perseguir as fontes domésticas de desvios, bem como que compartilhem com a Polícia Federal os dados de armas apreendidas, em especial as estrangeiras e de maior poder de fogo.

Rastrear a origem, fechar fontes de desvios, identificar e retirar de circulação os grandes fornecedores de armas e munições é a receita para reduzir os alarmantes níveis de violência armada no país e sanar a sensação de insegurança da população brasileira. Podem soar óbvias, mas precisam ser repetidas frequentemente diante da falta de consistência das políticas de segurança pública no Brasil.

Certamente, o que joga contra o esforço árduo de policiais de todo o Brasil, que retiram armas ilegais de circulação, é a entrada, sem freio, de novas armas na sociedade. É enxugar o chão com a torneira aberta.