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Enem: Olimpíada ou Paralimpíada?

O ENEM é idolatrado pelos que obtém boas colocações, vilipendiado pelos fracassados e ignorado por quem não quer conhecer sua própria ruindade

Por Claudio de Moura Castro*

query_builder 4 out 2016, 12h40

* Claudio de Moura Castro é economista

Mas quem será Sua Alteza, o ENEM? De que moléstias sofre? Que segredos revela?

O ENEM é filho bastardo, pois tem nobres e plebeus em seu sangue. Nasceu com um objetivo, foi usado para outro e remendado muitas vezes.

Ao contrário de testes como o SAEB, nasce sem estar baseado em uma matriz dos conteúdos propostos na escola. Tenta-se enfiar nele uma tal matriz - com resultados sofríveis. No fundo, ainda é uma colagem de perguntas. Portanto, não permite dizer com segurança se os alunos sabem o que se espera que saibam, o que fazem o SAEB e a Prova Brasil. Tal como o ENADE, é apenas confiável para dizer quem é melhor do que quem.

Inicialmente, tentava medir competências desvinculadas dos currículos. Para passar a servir de vestibular, ganhou perguntas do que constava nos programas da época. Mas acabou parecido demais com os velhos vestibulares. Ignora os graduados do médio que terminam aí a sua escolaridade – e são três quartos do total. Com as mudanças planejadas para o Ensino Médio e Bases Curriculares, terá que ser reajustado mais uma vez.

Contudo, as perguntas tendem a ser bem escolhidas, medindo a capacidade de interpretação e raciocínio – dimensões críticas do que se espera da escola. E o que é positivo, os resultados são estáveis de ano a ano, com forte correlação entre língua portuguesa e redação.

O que quer que se espere que a escola faça, há um núcleo duro que é condição sine qua non para uma boa educação. Na escola e pela vida afora, é com a palavra que nos comunicamos – seja ela escrita ou falada. Portanto, saber lidar com palavras é a primeira lição da escola. Sendo assim, ler, entender o que leu, escrever e falar certo são funções em que, se a escola falhar, o resto trava. Tudo que acontece na escola exige estas competências. São muito mais importantes do que saber a capital da Mongólia ou a fórmula da Lei de Boyle-Mariotte. Em paralelo, há que aprender a usar números para lidar com aspectos essenciais da nossa vida.

E isso o teste mede bem. Quem obtém escores mais altos dominou melhor os códigos essenciais da comunicação humana. E quem fracassar, não possui as ferramentas para avançar na sua educação.

Como exame voluntário nas escolas privadas, a participação reflete decisões individuais dos alunos ou pressões da escola que cursam – para fazer ou não fazer a prova! Assim sendo, padece de um vício de origem: não é uma amostra aleatória. Suponhamos duas escolas cujos alunos têm rigorosamente o mesmo conhecimento. Se em uma todos fazem a prova e na outra, apenas os melhores, os resultados falsamente penderão a favor da que peneirou seus alunos.

Ao se tornar gigantesco, este viés se reduz, porque na rede privada relativamente poucos ficam de fora. Mas como muitos não o fazem na rede pública, os resultados subestimam os níveis sociais mais baixos. No todo, é preciso muita cautela para tirar conclusões globalizantes.

Tal como as pesquisas de intenção de votos, tem uma margem de erro. Há o viés amostral, acima mencionado. As barbeiragens na aplicação são motes para grandes manchetes, mas na prática são ínfimas, diante dos acertos. E há os erros aleatórios: a mosca voou, o aluno se distraiu e marcou errado. Sendo assim, diferenças estreitas entre escolas nada dizem.

Os testes, não apenas o ENEM, são criticados por não medirem outras dimensões relevantes, como caráter, criatividade e outras. De fato, não sabemos bem como capturar esses traços. Mas é tolice deixar de medir o que sabemos, só porque há outras características resistindo à quantificação.

Entendidas suas virtudes e limitações, o que aprendemos sobre os alunos e suas escolas? Muito! Mas com as devidas precauções.

A Olimpíada do ENEM tem aspectos positivos, sobretudo na rede privada. Quando uma escola tenta melhorar seu desempenho no teste, não tem alternativas senão ensinar melhor aos alunos. Isso é bom.

Mas os alunos e pais precisam entender que são irrelevantes as diferenças entre escolas de pontuação próxima. “Imaginem, a escola X passou na frente da escola Y!”. Pura bobagem, pequenas diferenças não merecem qualquer confiança. Mas as cinco melhores escolas, certamente, são superiores à vigésima ou trigésima.

De forma consistente, as escolas privadas mostram resultados superiores às públicas. É verdade, recebem predominantemente alunos de nível social mais alto. Porém, pesquisas sugerem que não é apenas isso. Já as melhores escolas públicas não pertencem à rede regular. São as escolas técnicas federais, as escolas de aplicação das universidades federais e as militares, cujos custos tendem a ser altos e clientela de melhor nível socioeconômico. Mas surpreendem os bons resultados das escolas da Polícia Militar, com alunos mais modestos do que os da rede privada.

Ilustração por AlphaDog