Quando se fala em direitos LGBT no Brasil, ainda hoje muita gente indignada interpreta como direito à promiscuidade. Obviamente, há aí um viés distorcido pelo olhar intolerante. O que é promiscuidade num caso pode ser apenas demonstração amorosa em outro, dependendo do preconceito. É só navegar pela internet para constatar que a normatividade heterossexual pratica diversos atos de promiscuidade explícita para todos os gostos. Isso poderá constranger, mas raramente provocará indignação. Ao contrário, dois homens se beijando no metrô paulistano pode gerar comoção nacional, como no caso recente do PM Leandro Prior, que deu um selinho num amigo, teve a imagem gravada à revelia e espalhada até viralizar nas redes sociais. Além de o soldado ter sofrido bullying homofóbico da parte de seus próprios colegas de farda, até mesmo o governador de São Paulo, em tempos de reeleição, teceu críticas negativas. O caso é emblemático não tanto pelo beijo em si, mas por revelar o montante de discriminação e intolerância que ainda cerca a expressão de afeto considerado à margem da norma heterossexual.
(André Porto/Folhapress)
Quando me perguntam sobre conquistas de direitos LGBT no Brasil atual, fatos como esse desmentem a fantasia de que estamos numa democracia plena. Ao contrário, constituem a ponta do iceberg da homofobia latente que pode eclodir sempre que houver clima favorável. Esse clima encontra-se hoje acirrado quase até o limite, a partir de preconceitos arraigados que têm sido expressos impunemente por uma parcela convictamente conservadora da sociedade brasileira. É o que se constatou durante o recente jogo entre Atlético-MG e Cruzeiro, em 16 de setembro, quando parte da torcida atleticana bradou em coro um slogan de pesado teor homofóbico contra os torcedores do time rival. Em vez dos xingamentos recorrentes, que têm sido passíveis de punição às torcidas, a grita centrava-se agora na ameaça de “morte aos viados”, numa manifestação agressiva que comportava um elemento inédito e peculiar: escorava-se na citação de um presidenciável que costuma incitar ódio contra homossexuais.
Tais preconceitos não caíram do céu. Têm sido alimentados durante décadas por pregações religiosas condenatórias, em reação às conquistas de direitos da agenda LGBT. Ao usarem recortes bíblicos escolhidos a dedo, pastores e autoridades religiosas dão o pontapé inicial, em nome da autoridade divina, para disseminar a violência contra pessoas dissidentes da heteronormatividade. Ao mesmo tempo em que brandem preceitos bíblicos como referência para embasar suas diatribes, esses líderes escondem outros trechos da Bíblia que poderiam chocar a sensibilidade moderna, por mais crente que se possa ser. Basta lembrar, entre outras tantas passagens, o livro do Êxodo 21,7 que dá orientações para vender a própria filha como escrava. Ou em 35,2 do mesmo livro, que condena à morte quem trabalhar no sábado. Ou que ordena o apedrejamento público de quem blasfemar, como se lê em Levítico 24,10-16.
"Tais preconceitos não caíram do céu. Têm sido alimentados durante décadas por pregações religiosas condenatórias, em reação às conquistas de direitos da agenda LGBT"
É curioso notar que o projeto baseado na nostalgia do poder teocrático e antidemocrático utiliza convenientemente a “abominação” à prática homossexual como forma de atrair, unir e sedimentar as várias vertentes do conservadorismo. As bancadas fundamentalistas do Congresso Nacional exemplificam claramente tal comprometimento. Ainda que a luta antiaborto seja crucial na pauta conservadora, a jornalista americana Masha Gessen destacou a importância do ideário anti-LGBT nas campanhas de Donald Trump, em artigo para a revista New York Review of Books. Visando a “tornar a América grande outra vez”, o atual presidente americano propunha como prioridade a volta a um passado supostamente glorioso. No escopo de desconstruir as inovações da era Obama, Trump mirou os direitos LGBT porque foram, segundo Masha, “a mudança social mais drástica nos Estados Unidos dos últimos dez anos”. Não por acaso, um dos atos mais emblemáticos do início da gestão Trump foi proibir transgêneros dentro das Forças Armadas, sob a alegação de que seus custos médicos estariam sobrecarregando o sistema de defesa americano.
No Brasil, semelhante estratégia tem se mostrado eficaz, a julgar pela intransigência com que as bancadas fundamentalistas têm impedido qualquer conquista na agenda LGBT. O exemplo do casamento homoafetivo é um deles: só foi implantado graças a iniciativas do Judiciário. Se o projeto conservador busca agora sua consolidação através da candidatura de Jair Bolsonaro, há um fator que nenhuma estratégia política consegue ignorar: a consciência política da própria comunidade LGBT.
"Numa democracia que se preze toda maioria é inevitavelmente composta por minorias. A população LGBT do Brasil aprendeu que sem esse princípio não existe sociedade democrática, e não está disposta a abrir mão dele"
Nas minhas várias décadas lutando pelos direitos homossexuais no Brasil, nunca vi essa população tão consciente dos seus direitos como agora. As inúmeras paradas LGBT pelo Brasil afora são apenas um entre muitos exemplos. Não se trata apenas da ação de lideranças esparsas, que nunca conseguiram atingir as camadas mais periféricas desse segmento específico. Mesmo que isso não configure uma conquista em representatividade parlamentar, as iniciativas partem agora de grande número de pessoas anônimas mobilizando-se para se organizar politicamente, nos mais diversos setores. Vejam os coletivos de lésbicas promovendo saraus de poesia, num projeto de artivismo (conceito recente de arte política, em que as duas coisas se mesclam, sem que uma neutralize a outra) comum nas novas gerações. Ou a Casa 1, criada e mantida em São Paulo por grupos da sociedade civil, para receber jovens LGBTs expulsos(as) de seus lares. Ou policiais organizando-se em torno da Renosp (Rede Nacional de Operadores da Segurança Pública) LGBTI, com estatuto bem articulado e encontros nacionais que reúnem representantes de vários corpos policiais de quase todo o território nacional.
Em qualquer desses casos, há uma convicção inabalável de que direitos democráticos devem incluir cidadãos e cidadãs alijados das pautas majoritárias. Não adianta a grita de candidatos autocráticos proclamando os direitos hegemônicos de uma suposta maioria, pelo simples motivo de que numa democracia que se preze toda maioria é inevitavelmente composta de minorias. A população LGBT do Brasil aprendeu que sem esse princípio não existe sociedade democrática, e não está disposta a abrir mão dele. Portanto, é melhor irem se acostumando.