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Só a informação fará o saneamento ser ‘desejo’ da sociedade

Só daremos um passo concreto para a solução das mazelas decorrentes da falta de tratamento de água e esgoto quando conscientizarmos desde o formador de opinião até o cidadão comum

Por Édison Carlos**

query_builder 16 mai 2019, 20h30

*Édison Carlos é presidente executivo do Instituto Trata Brasil

Mario Sergio Cortella, um dos filósofos brasileiros mais respeitados da atualidade, disse certa vez que “não basta ter informação, é preciso saber o que fazer com ela". E é com esta reflexão que direciono a atenção para um problema gravíssimo, com o qual ainda temos de conviver diariamente no Brasil: a ausência de saneamento básico.

Após já ter produzido dezenas de estudos e divulgado outras dezenas de conclusões, estamos convictos de que só daremos um passo concreto para a solução das mazelas da falta de saneamento quando conscientizarmos desde o formador de opinião até o cidadão comum. E não há outra forma de fazer isso que não seja dando a todos o acesso à informação. Caso contrário, a sociedade continuará tendo uma noção muito simplificada do problema e jamais reivindicará os serviços na devida proporção de sua importância.

Os romanos já sabiam que era preciso proteger a água que chegaria à população e que era essencial retirar os esgotos da cidade. No entanto, ainda hoje temos de convencer prefeitos, governadores e parlamentares dessa ideia. Impressionante, uma vez que o Brasil ainda possui quase 35 milhões de pessoas sem abastecimento de água tratada e perto de 100 milhões sem coleta de esgoto – além disso, somente 46% dos esgotos gerados são tratados. Traduzindo: a população sem acesso à água equivale à do Canadá, e aquela sem coleta de esgoto corresponde ao dobro de moradores da Espanha. Se transformar a quantidade de esgoto não tratado no Brasil em piscinas olímpicas, são mais de 5.600 delas cheias de esgoto in natura sendo despejadas na natureza todos os dias.

Outra aberração nacional é o fato de perdermos 38% de toda a água potável produzida no país por causa de vazamentos, roubo, “gatos” e erros de medição. Se fosse uma padaria, significaria que, de cada 100 pãezinhos produzidos, 38 seriam perdidos. Esta é a média nacional – há localidades que perdem mais de 50%. Costumo dizer que a perda de água é a “sustentabilidade de ponta cabeça”, pois há danos do ponto de vista ambiental (precisamos tirar mais água da natureza do que o necessário), econômico (a empresa não recebe pelo que produziu) e social (quanto mais perdas, menos pessoas conseguem ter abastecimento regular de água).

(Filipe Araújo/AE)

Estudar as perdas também é essencial para trabalhar na mitigação da ocorrência dos eventos extremos, sobretudo nas estiagens mais severas; perder a água tratada pode custar muito caro para as cidades que estejam passando por secas, punindo primeiramente o cidadão que poderia ter o recurso disponível na torneira. Ainda que os técnicos do setor afirmem que é impossível zerar as perdas nos sistemas de distribuição, todos nós concordamos que os 38% atuais não são aceitáveis e que o custo para a sociedade é muito alto.

Se os números são claros e explicitamente divulgados, então surge a reflexão do início, retirada dos pensamentos de Cortella: se conhecemos os dados, o que fazer com isso? O Instituto Trata Brasil, com o apoio de consultorias renomadas, coletou os indicadores socioeconômicos e ambientais mais relevantes para mostrar as consequências da presença e da ausência de saneamento. E colocamos tudo numa nova plataforma de dados que permite a qualquer pessoa ter acesso usando sua localidade para saber como a questão está afetando seu dia a dia. Chamado “Painel Saneamento Brasil” (www.saneamentobrasil.org.br ), o propósito é ajudar a sociedade brasileira a entender como ela está sendo impactada quando há falta de água tratada, coleta e tratamento de esgoto.

As correlações conseguidas são marcantes. Por exemplo, num país com grandes desigualdades socioeconômicas, os indicadores de saneamento mostram que ter ou não água e esgoto impacta a renda do cidadão. O salário médio do trabalhador que habita locais com saneamento é de 2.500 reais, enquanto o dos sem saneamento é de 1.300 reais. Pessoas que vivem em lugares sem saneamento se ausentam mais no trabalho por problemas de saúde – seja a delas mesmas ou a de familiares – e essas ausências custaram à sociedade, só em 2017, mais de 16 bilhões de reais. O Sistema Único de Saúde (SUS) gastou, também em 2017, 98 milhões de reais apenas com internações por doenças de veiculação por meio hídrico.

Outro ponto abordado está na nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que mostra que a ausência de um banheiro na casa dos estudantes impacta o rendimento do aluno diretamente. Na nova plataforma é possível identificar que a nota média no Enem daqueles que têm banheiros em casa é de 521,10 reais, enquanto, entre aqueles que não o possuem, a nota média cai para 472,23 reais – esta discrepância é mais acentuada em algumas regiões brasileiras. Ainda sobre a educação brasileira, alunos que convivem em lugares sem saneamento básico, o que também inclui obviamente o acesso a um banheiro, perdem, em média, dois anos da vida escolar devido às ausências provocadas pelas doenças de veiculação hídrica.

E quanto custa para resolver o saneamento básico no Brasil? No fim de 2013, a presidente Dilma Rousseff promulgou o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), mostrando que o Brasil precisaria de 304 bilhões de reais de investimentos para universalizar a água e os esgotos até 2033. Falávamos, então, de mais de 15 bilhões de reais por ano para cumprir a meta, mas nunca conseguimos chegar a esse patamar. Hoje regredimos a valores da ordem de 11 bilhões de reais, por isso estima-se que a necessidade atual passe dos 400 bilhões de reais, ou 20 bilhões de reais ao ano. Para complicar, nesse período o Brasil se tornou signatário dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas, com compromisso de levar água, coleta e tratamento de esgoto a todos os brasileiros até 2030 – três anos antes da meta do Plansab, já ambicioso. A meta específica sobre os ODS em questão requer que o país signatário ofereça água e esgotamento sanitário para toda a população de maneira eficiente, sustentável e segura. A continuar como está, passaremos longe das duas metas, podendo esperar os resultados para 2060, aproximadamente.

Há também grande disparidade nos investimentos por estado. Entre 2015 e 2017, o país investiu cerca de 35 bilhões de reais em água e esgotos. São Paulo aplicou mais de 12,5 bilhões de reais ao ano, quase 37% do que o país gastou. Se juntarmos com mais quatro estados (Paraná, Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais), estamos falando de dois terços do investimento (23 bilhões de reais). Significa que sobraram em torno de 11,5 bilhões de reais para os investimentos de todos os demais estados. Muito pouco!

Precisamos de toda ajuda possível, seja do setor público, seja do privado, mas sobretudo da população, cobrando e pressionando para termos essa que é a infraestrutura mais elementar de todas. Está, portanto, mais do que evidente que precisamos ter foco. Entendemos que facilitar o acesso às informações ajuda a criar consciência, especialmente sobre esses números que mostram problemas às nossas vidas. O sonho é que mais informação ajude a todos a fazer pressão pelo mais básico do básico e que um dia um portal de informações para este fim não seja mais necessário.