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Decreto contraria espírito da Lei de Acesso à Informação

Ato vai na contramão das melhores práticas e das diretrizes da LAI, além de não combinar com o discurso de transparência e moralidade que ajudou a levar Bolsonaro ao poder

Por Fabiano Angélico*

query_builder 25 jan 2019, 10h30

*É jornalista e consultor-sênior da Transparência Internacional. Especialista em transparência pela Universidade do Chile e mestre em Administração Pública pela FGV.

As leis de acesso à informação (LAIs) são marcos da transparência pública em todo o mundo. A lei de acesso mais longeva é do Reino da Suécia, estabelecida em 1776 – antes mesmo da Revolução Francesa ou da Independência dos Estados Unidos – quando o país nórdico era maior em território porque incluía também o que hoje é a Finlândia. Foi apenas em 1951 que a segunda lei de acesso a informações públicas (LAI) entrou em vigor no mundo: exatamente na já independente Finlândia. Estados Unidos (1966), Dinamarca e Noruega (ambos em 1970) completam o rol dos cinco países com marcos legais de transparência mais longevos. Pode-se especular que talvez esteja aí uma das razões pelas quais os países nórdicos são repetidamente apontados como os menos corruptos, segundo, por exemplo, o IPC (Índice de Percepção da Corrupção), da Transparência Internacional. Possivelmente a cultura e as práticas de transparência já se enraizaram no cotidiano da Administração Pública nesses países, dada a longevidade da norma legal.

A partir da última década do século XX, depois do fim das ditaduras militares e comunistas e com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, explodiu o número de países com leis de acesso à informação. Em 1990 apenas treze países tinham leis do tipo. Em 2010 esse número já estava por volta de 85.

A Lei 12.527/2011, a LAI brasileira, foi sancionada em novembro daquele ano e entrou em vigor em maio de 2012 – os seis meses de prazo deveriam, em tese, ser suficientes para que os órgãos públicos brasileiros organizassem suas informações, para divulgar o que poderia ser divulgado e classificar como sigiloso aquilo que a lei assim determinava.

(GettyImages)

É que, diferentemente de outras normas pró-transparência, que obrigam a Administração Pública a abrir este ou aquele conjunto de dados com tal e qual periodicidade, as LAIs não dizem quais informações devem ser transparentes: elas afirmam que, a priori, tudo o que é produzido e detido pelo Estado é de domínio público, com algumas exceções. E tais exceções devem ser estritamente delimitadas e justificadas. Aliás, a lei modelo interamericana sobre o acesso à informação, aprovada no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos) para orientar os países das Américas na discussão e aprovação de suas leis nacionais, sugere que as exceções à transparência apenas se justificam “quando o acesso gerar um risco claro, provável e específico de um dano” ao interesse público.

Nesse sentido, pode-se dizer que os termos de classificação de informações são o que estabelece a fronteira entre o que é público e o que não é. Entre a transparência e a opacidade. O ato de decidir quais informações são sigilosas é, portanto, o coração, o cerne das leis de acesso à informação. Não é algo lateral, não é um detalhe da lei. E é precisamente por isso que os atores institucionais sobre os quais pesam a responsabilidade de classificar informações devem ser em número reduzido e devem estar no topo da hierarquia.

É, portanto, inadequada a decisão de modificar o decreto que regulamenta a LAI brasileira – e fazê-lo sem qualquer tipo de debate público –ampliando sobremaneira a possibilidade e probabilidade de que informações públicas sejam classificadas como sigilosas. Mais intrigante ainda é o fato de o Decreto 9.690 de 23 de janeiro de 2019 não trazer a assinatura dos titulares de dois ministérios considerados técnicos e que se relacionam diretamente com o tema: nem o ministro da Justiça, Sergio Moro, nem o ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, assinam o ato. O decreto traz apenas a assinatura do vice-presidente, Hamilton Mourão, no exercício da Presidência da República, e do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. O que leva à hipótese de que foi uma decisão mais política do que técnica.

Existe a leitura de que o decreto regulamentador anterior, de 2012, errava ao vedar a delegação, dado que a lei a facultava, o que ensejaria uma nova regulamentação. Ainda que se considere essa leitura razoável, o novo decreto é uma oportunidade perdida. A delegação de atribuições deveria ser mais estrita e precisa, não transferindo para funcionários subalternos todos os poderes da classificação de documentos como ultrassecretos ou secretos. Ademais, o decreto de 2012 poderia se melhorado no tocante ao grau reservado. Nessa faixa de classificação, o dirigente máximo de cada órgão pode delegar “a agente público que exerça a função de direção, comando ou chefia”. Esse escopo é por demais amplo, e este decreto de janeiro de 2019 poderia ter ajustado isso.

Classificar um documento como sigiloso não é tarefa trivial. Exige uma rigorosa e cuidadosa análise técnica, sempre orientada pelos princípios constitucionais da publicidade e da moralidade (artigo 37 da Constituição Federal) e por diretrizes da lei de acesso à informação. O artigo 3º da Lei 12.527/2011 aponta essas diretrizes: observância da publicidade como regra e sigilo como exceção; fomento ao desenvolvimento de uma cultura de transparência na administração pública; desenvolvimento do controle social da administração pública.

Nessa linha, uma proposta de reforma da lei de acesso à informação brasileira é uma das Novas Medidas contra a Corrupção, conjunto de anteprojetos de lei criado por cerca de 200 especialistas brasileiros, num processo facilitado pela Transparência Internacional e pela Fundação Getúlio Vargas. Entre outros itens, a proposta de reforma à LAI brasileira inclui um “teste de dano e de interesse público”, mecanismo presente em outras leis do tipo mundo afora. O objetivo desse procedimento é exatamente o de exigir uma formulação mais específica e restrita nos casos de sigilo.

Há várias formas de se aplicar o teste de dano, mas a principal delas é a seguinte: nos casos de dissensos ou dúvidas na classificação da informação como sigilosa, convoca-se uma reunião entre autoridades do órgão e aplica-se um questionário com perguntas sobre os possíveis malefícios de aquela informação específica vir a público. Por fim, os participantes votam secretamente sobre se concordam ou não com a classificação da informação. Já o teste de interesse público envolve o cidadão requerente, que é convidado a demonstrar que a informação solicitada tem alto interesse público, portanto deveria ser transparente.

"Os termos de classificação de informações são o que estabelece a fronteira entre o que é público e o que não é. Entre a transparência e a opacidade."

Em resumo: existem sim lacunas na LAI brasileira e em seu decreto regulamentador. As normas devem avançar e se ajustar. O problema, portanto, não é ter havido um decreto. O problema é termos um decreto sobre o marco regulador da transparência divulgado sem transparência anterior, sem qualquer debate, assinado exclusivamente pelo núcleo político do governo, e que eleva a probabilidade de aumentar a discricionariedade (e, portanto, falta de uniformidade) e a quantidade de informações sigilosas.

A Constituição do Brasil e a LAI determinam a publicidade como regra e o desenvolvimento de uma cultura de transparência e de controle social como diretrizes. As melhores práticas internacionais consolidaram o conceito de máxima transparência, no sentido que o sigilo é algo altamente excepcional. O governo atual foi eleito com o discurso da moralidade e da transparência. Dado que o decreto 9690/2019 vai na contramão da LAI brasileira, na contramão das melhores práticas internacionais e é dissonante com relação ao discurso do atual governo, é de se esperar que ele seja revogado. E que um decreto discutido com a sociedade possa substituí-lo para que a transparência siga avançando no Brasil.