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O protagonismo brasileiro na Antártica: o papel da ciência

É preciso mudar o cenário de pesquisas abandonadas, bolsistas dispensados e nenhum projeto nacional com recursos para financiar a ida de pesquisadores à região a partir de 2019

Por Jefferson Cardia Simões* *

query_builder 30 mai 2018, 16h30

*Jefferson Cardia Simões é vice-presidente do Comitê Científico de Pesquisa Antártica (SCAR), membro da Academia Brasileira de Ciências, professor titular da UFRGS e PhD na Universidade de Cambridge

Após a II Guerra Mundial, apenas um continente permanecia sob disputa territorial e ainda em grande parte desconhecido, a Antártica. Ao longo dos anos 1950, alguns incidentes ocorreram, principalmente entre as nações que reivindicavam parte do continente antártico. A solução encontrada, para evitar uma nova onda neocolonialista, surgiu quando a comunidade diplomática usou o sucesso da cooperação científica do Ano Geofísico Internacional (AGI) — entre 1957 e 1959, quando foram realizadas intensas pesquisas nas duas regiões polares e iniciou-se a era espacial com o lançamento do satélite Sputnik — para propor o Tratado da Antártica. Assim, em dezembro de 1959, doze países que realizaram projetos científicos naquele continente durante o AGI assinaram o documento. Os signatários concordaram que a Antártica seria usada apenas para fins pacíficos, que deveria haver liberdade de investigação e que observações científicas e resultados seriam disponibilizados livremente. Enquanto o tratado está em vigor, as reivindicações territoriais existentes estão congeladas e não são permitidas novas demandas.

O papel político da ciência dentro do tratado é reforçado em um de seus artigos em que é prevista a entrada de novos membros, com a exigência de que as partes contratantes desenvolvam “substancial atividade de pesquisa científica”, para que mantenham o direito de voto nas reuniões que decidem o futuro da região (no caso do Brasil, a partir de 1982; hoje são dezessete países além dos doze signatários originais). Ou seja, trata-se de toda a área ao sul do paralelo 60°S, incluindo o continente de 13,6 milhões de quilômetros quadrados (uma área equivalente a 1,6 vez o território brasileiro) e parte do Oceano Austral (ou Antártico). O tratado é um regime jurídico que decide o futuro de 34 milhões de quilômetros quadrados, ou 7% da superfície da Terra.

Estação Antártica Comandante Ferraz, base brasileira de pesquisas na Antártica (Eduardo Knapp/Folhapress)

Ao longo dos últimos sessenta anos, a comunidade científica, principalmente pelos esforços coordenados pelo Comitê Científico de Pesquisa Antártica (Scar, na sigla em inglês) do Conselho Internacional para a Ciência (ICSU), fez descobertas surpreendentes, que mudaram a maneira como vemos o nosso mundo: (1) a carência planetária de ozônio estratosférico (o “buraco de ozônio”), que ainda atinge recordes sobre a Antártica; (2) a fauna e flora fóssil da Antártica antes de ela ser coberta pelo imenso manto de gelo; (3) a constatação de que a maior reserva de água potável do mundo é o gelo da Antártica (25 milhões de quilômetros cúbicos), que em alguns lugares atinge quase 5 quilômetros de espessura; (4) a constatação da existência de mais de 400 lagos escondidos embaixo de milhares de metros de espessura de gelo, um novo ambiente no planeta; (5) a alta biodiversidade do Oceano Austral; (6) a história dos dois principais gases estufas (dióxido de carbono e metano) ao longo de milhares de anos. Essas descobertas influenciaram políticas globais, como a proibição do uso de produtos químicos que destroem a camada de ozônio e a proteção dos ecossistemas do Oceano Austral na gestão da atividade comercial, e assessoraram discussões internacionais sobre mudanças climáticas.

Das constatações científicas, porém, talvez a mais simples é a que mais surpreenda os brasileiros: as regiões polares são tão importantes quanto os trópicos no sistema ambiental global, pois a circulação atmosférica e oceânica e, consequentemente, o sistema climático terrestre decorrem da transferência de energia dos trópicos para as regiões polares. Os processos que lá ocorrem nos afetam, e vice-versa. Por exemplo, as friagens ou frentes frias que podem chegar até o sul da Amazônia são geradas no Oceano Austral. Não melhoraremos os modelos do clima para o Brasil se não incluirmos a Antártica.

"O Brasil alcançará um protagonismo antártico proporcional à sua relevância no cenário internacional somente enquanto mantiver um programa científico de vanguarda e que responda a questões de interesse da nossa sociedade."

Ao longo das últimas décadas, o novo quadro político internacional pós-Guerra Fria, o surgimento da questão das mudanças ambientais globais e as modificações internas do Sistema do Tratado da Antártica (STA, que inclui o tratado e uma série de convenções complementares, como a criação do Protocolo ao Tratado Antártico sobre Proteção ao Meio Ambiente de 1991) deram à ciência antártica um papel mais proeminente nas decisões políticas sobre a região. Hoje, a influência de um país no STA está atrelada à qualidade de seu programa de pesquisa científica. Assim, uma forte atuação científica reforça indiretamente o status do país no STA.

Ao longo de 36 anos, a participação da comunidade científica no Programa Antártico Brasileiro (Proantar) foi contínua, garantindo o avanço do conhecimento sobre as relações do meio ambiente antártico com o Brasil, além de atuar na sua preservação. Levando-se em conta o histórico acima e considerando o anúncio da inauguração para 2019 da nova Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz (com custo multimilionário financiado pelo Ministério da Defesa), seria esperado que a parte científica tivesse pelo menos recursos para a manutenção de suas atividades. A realidade, infelizmente, é diferente. Pesquisas sendo abandonadas, bolsistas sendo dispensados e, por enquanto, nenhum projeto nacional com recursos para financiar a ida de pesquisadores a partir de 2019. Note que hoje perdemos para todos os países do Brics em investimentos na ciência antártica — somente a África do Sul tem um programa científico na região tão mal financiado quanto o brasileiro (onde a economia é um vigésimo da nossa e com condição socioeconômica pior). Nossa esperança é que seja confirmado o lançamento de novo edital para a pesquisa antártica brasileira, conforme foi anunciado recentemente pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, o primeiro desde 2013. Pois, a duras penas, conquistamos a liderança científica latino-americana nos últimos quinze anos — e isto estará gravemente comprometido sem esse novo financiamento.

Hoje não basta ir à Antártica e ter um programa científico mal financiado, com metas de curto prazo, achando que manter sua logística e uma estação antártica funcionando (diga-se de passagem, a parte mais cara) seja o suficiente — isto é só início. Há que se ter visão estratégica e tentar atrair os melhores cientistas para que esse programa seja forte. Não podemos negar a parte política na ação científica do Brasil na Antártica, por isso um programa científico forte é a maneira de mostrar a envergadura do país dentro do STA. Na Antártica se medem forças com muita sutileza! Em suma, o Brasil alcançará um protagonismo proporcional à sua relevância no cenário internacional somente enquanto mantiver um programa científico de vanguarda e que responda a questões de interesse da nossa sociedade.