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A falta que faz uma ética do trabalho

Festa 'Se nada der certo' atesta a naturalização do desprezo histórico por trabalhos manuais no Brasil – mas isso não é uma fatalidade cultural ou institucional

Por Eduardo Wolf*

query_builder 12 jun 2017, 17h45

*Doutor em Filosofia pela USP, Eduardo Wolf é secretário-adjunto de Cultura de Porto Alegre

Tinha tudo para ser mais uma polêmica de internet: episódio envolvendo jovens de classe média alta revela preconceito social e vai parar nas redes, deixando o público entre a perplexidade e a revolta. Aliás, tinha tudo para ser mais uma polêmica com os tradicionais ingredientes da irrelevância do engajamento social online: muita afetação supostamente progressista, um tanto de cerceamento da liberdade de expressão (especialmente limitadora nos casos de humor) e um bocado de “textão problematizador”. Só que, dessa vez, não foi bem assim.

A festa “Se nada der certo”, realizada por alunos do terceiro ano do Ensino Médio de uma escola na grande Porto Alegre, virou notícia na semana passada à medida que fotos dos alunos vestidos de garis, faxineiras e atendentes de fast-food caíram nas redes sociais. Há, é claro, a galhofa pretendida, a despretensão do riso ligeiro e, sobretudo, a intenção de rir de si mesmo. No entanto, as imagens das fantasias dos adolescentes das classes confortáveis do país travestidos de trabalhadores manuais trouxeram de contrabando algo mais do que esse riso, tolo ou condenável: a total ausência de uma ética do trabalho suficientemente disseminada na sociedade brasileira.

Sasha Obama, trabalhando no caixa: contraparte exata das fotos de jovens de classe média alta ridicularizando os trabalhadores manuais (Reprodução/Instagram - Reprodução)

Uma comparação ajuda a entender essa ausência. A contraparte exata das fotos dos filhos da Pátria Mãe ridicularizando os trabalhadores manuais também fez sucesso nas redes, só que em 2016, e nos Estados Unidos. Trata-se da foto de uma das filhas do então presidente Barack Obama, Sasha, trabalhando no caixa de uma lanchonete. Mesmo assumindo o risco de uma justaposição sem maiores mediações, o contraste é evidente: do lado de lá, o trabalho como um valor que merece ser ensinado, transmitido e que vem com um sinal positivo; do lado de cá, a naturalização do menoscabo pelos que se dedicam aos trabalhos manuais oculta sob a forma de ironia com os destinos exitosos ou fracassados nas vidas e nas carreiras dos jovens privilegiados do Brasil.

Se a oposição parece forçada, assim, à primeira vista, vejamos um contraste mais refinado entre essas duas atitudes em face do universo do trabalho, mas que nos conduzirá à mesma conclusão. No Brasil do século XIX, o mais rico e poderoso empresário do Segundo Império, o também gaúcho Irineu Evangelista de Souza, conhecido como o barão e visconde de Mauá, convidou ninguém menos do que o próprio imperador, D. Pedro II, para a inauguração de uma de suas estradas de ferro. Tendo trabalhado desde jovem no comércio, exercitando-se em toda a sorte de serviços manuais, Mauá teve como empregador um negociante escocês que lhe incutiu o amor e o respeito ao trabalho e ao empreendedorismo. Movido por essas convicções arraigadas em sua personalidade, no momento da inauguração da estrada de ferro, quis dar a “honra” ao imperador de lhe entregar uma pá e um carrinho, forçando o monarca a uma pose de operário. A ofensa perdurou, e fazia todo o sentido que perdurasse em um país em que o trabalho manual era associado ao trabalho escravo e em que até mesmo liberais entusiastas de Adam Smith “corrigiam” o pensador escocês apontando o labor intelectual como a verdadeira forma elevada de trabalho.

"Fazer uma mesa ou uma cadeira na oficina de marcenaria não é, de modo algum, moral ou socialmente distinto de imprimir em 3D uma cidade projetada em software de última geração"

No mesmo período, nos Estados Unidos, o líder máximo da nação que viria a se consolidar como expressão da modernidade, do capitalismo e da democracia, Abraham Lincoln, manifestava-se em termos diametralmente opostos: “Se um homem lhe diz que ama a América, mas odeia o trabalho, ele é um mentiroso. Se um homem lhe diz que confia na América, mas teme o trabalho, ele é um tolo”. A América identificava-se com o trabalho, e o trabalho tem valor em todos os seus níveis: tem valor no cuidado amoroso com que o founding father John Adams cultiva com suas próprias mãos suas terras; tem valor na variada e colorida engenhosidade de Thomas Jefferson, outro pai fundador, colocando toda sua inteligência para finalidades tão práticas quanto a construção de móveis para sua casa na Virgínia; tem valor, não esqueçamos, nos múltiplos trabalhos assumidos pelo jovem órfão Abraham Lincoln, inclusive o de lenhador, para sustentar sua família.

Mas não gostaria de sugerir que há alguma fatalidade cultural ou institucional que nos condene à essa condição. Pelo contrário. Nesta mesma semana em que os jovens das classes confortáveis humilhavam os trabalhadores em uma “festa inocente”, fui visitar um “fablab” em Cidade Tiradentes, distrito no extremo-leste na cidade de São Paulo. Essa região de alta sensibilidade social sedia, em seu Centro de Formação Cultural, um espaço conhecido como “fablab”, em que os jovens aprendem a lidar com os mais modernos computadores e, mais que isso, são ensinados a pensar de maneira autônoma, empreendedora e criativa. Neste mesmo espaço, e em outros espalhados pela cidade, esses jovens também aprendem a projetar materiais e têm aulas de carpintarias. Fazer uma mesa ou uma cadeira na oficina de marcenaria não é, de modo algum, moral ou socialmente distinto de imprimir em 3D uma cidade projetada em software de última geração. As mesmas mãos das mesmas crianças que aprendem a fazer uma cadeira para o laboratório projetam nas telas das mais avançadas máquinas cidades imaginadas. São essas mãos que construirão um grande Brasil. São essas crianças que darão as melhores festas para o país no futuro.