PÁGINA ABERTA

De currais e caricaturas

Atenção: as gritas de reparação histórica e as exigências do politicamente correto estão nos levando a um processo inteiramente novo — a guetificação

Por Maicon Tenfen*

query_builder 10 out 2016, 13h40

* Maicon Tenfen é escritor e professor de literatura na Furb (Universidade Regional de Blumenau)

Parte do terreno onde hoje fica a Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, já foi um campo de concentração — sim, com todas as letras. Às vésperas da II Guerra Mundial, com a “campanha de nacionalização” promovida pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, milhares de colonos que não falavam português — e por isso representavam uma “ameaça” à nação — foram confinados em gigantescos currais de arame farpado. Muitos tiveram a saúde arruinada para sempre. Alguns morreram devido aos maus-tratos e à falta de assistência médica.

Nas colônias teuto-brasileiras de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul seguiu-se um silêncio cultural que durou mais de vinte anos. Jornais semanais e diários, editoras, sociedades dramático-musicais, escolas primárias e outras instituições que funcionavam em alemão deixaram de existir da noite para o dia. Os mais velhos pararam de ensinar sua língua aos filhos e netos, que passaram a ter vergonha do idioma e de tudo o que ele representava, incluindo as características étnicas dos falantes. “Alemão batata” e “alemoa tansa” são expressões que sobreviveram àquela época.

Centenas de milhares de descendentes de alemães poderiam ser automaticamente bilíngues nos dias de hoje. Infelizmente, apesar de termos sobrenomes europeus e — motivo de piada — sotaques remanescentes da língua que nos roubaram, pouco ou nada sabemos de alemão. A perda é incalculável, principalmente se considerarmos que, no mundo das comunicações instantâneas, uma segunda língua é requisito-chave para intercâmbios culturais e crescimento profissional. Existe algum culpado por essa desgraça? O Estado brasileiro, é óbvio, que não hesitou em perseguir parte da população com uma política imoral, apressada e truculenta.

Nada mais coerente, portanto, do que criarmos um movimento em busca de indenização, certo? Errado. O exemplo anterior serve apenas para mostrar que as coisas não são tão simples quanto parecem. Nos anos 1940, os japoneses que viviam no Brasil sofreram ainda mais que os alemães. O mesmo pode ser dito de judeus, árabes, poloneses e italianos. Não foram apenas os índios e os negros que padeceram nas garras de um Estado imaturo e elitizado como o nosso, ainda que tenham padecido numa escala maior e mais documentada. Se procurarmos nos livros certos, descobriremos que todos os grupos étnicos, religiosos e sexuais teriam direito a alguma forma de reparação.

Pois é aí que reside o problema.

Se você acredita que desencavar rancores contribui para o amadurecimento do país, está guiando por uma contramão arriscada, da qual é sempre difícil retornar. Em vez de resolverem as demandas das quais se originaram, as iniciativas de reparação histórica e as admoestações politicamente corretas que as acompanham têm o poder de complicar ainda mais a situação. Normalmente transformam-se em bandeiras de políticos irresponsáveis que querem ver o circo pegar fogo para se dar bem nas urnas. As consequências são evidentes: mais do que polarizada, a sociedade brasileira está “guetificada”, e não apenas por razões étnicas ou político-partidárias.

“Viramos membros de clãs que erigem totens para impor nossa verdade aos vizinhos. Quem discorda merece a fogueira”

Das igrejas que lutam contra a descriminalização do aborto aos coletivos feministas sediados em universidades, das ações dos grupos LGBT às bancadas conservadoras que cunharam a expressão “heterofobia”, parece que todo mundo quer vestir a capa do Supercidadão e sair voando para salvar o planeta. De repente começamos a nos ver como membros de clãs que sentem a obrigação de erigir totens para impor nossa verdade à vizinhança. Quem discorda é “ignorante” e por isso merece a fogueira. Nunca é demais lembrar que a ascensão dos movimentos de autoafirmação minoritária foi uma das maiores vitórias do nosso tempo, mas — muita calma nessa hora — a radicalização de palavras de ordem e o resgate forçado de ressentimentos transformaram essa conquista numa faca de dois gumes.

Vivemos num período tão complexo que talvez seja impossível encontrar alguém que possa se definir sem ressalvas. Diante da confusão, apelar para o estereótipo to­rnou-se a saída mais cômoda. De todas as caricaturas que passaram a simbolizar as mazelas da humanidade, o Homem Branco Ocidental parece ser a mais recorrente, como se todos os homens brancos, sem exceção, fossem racistas, machistas e homofóbicos. Se você pertence a esse grupo, já deve ter sido silenciado em algum debate por aí. Não importa sua opinião, se é a favor ou contra, pois já foi tachado como o machista do grupo e ponto-final. Em compensação, a caricatura que se costuma desenhar como resposta também não deixa de ser injusta: a feminista furibunda que pensa pouco e grita muito é outro dos estereótipos que criamos para empobrecer o debate.

Ninguém gosta de receber lições de moral por aquilo que é. Por isso, antes de leis arbitrárias elaboradas por “iluminados” e impostas a uma população que ainda não teve tempo de digerir preconceitos ancestrais, precisamos é de educação igualitária e multicultural para todos. Conhecer a cultura daqueles que consideramos diferentes é a melhor maneira de nos aceitarmos coletivamente, e não apenas de nos “tolerarmos”. A “guetificação” não é boa para ninguém. Se insistirmos nisso, acabaremos voltando aos currais de arame farpado.

Ilustração por AlphaDog