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Criança tem que ficar fora da cadeia

A insalubridade e a falta de estrutura das nossas prisões condenam os filhos de mulheres presas antes mesmo do julgamento de suas mães

Por Marianne Pinotti*

query_builder 20 fev 2018, 22h05

* Marianne Pinotti, ginecologista, obstetra e mastologista, doutora pela USP, coordenadora de equipe de Cirurgia Oncológica Mamária do Centro de Oncologia da Beneficência Portuguesa e diretora médica da Clínica Pinotti

Nos meus quase 25 anos de experiência como médica, lido diariamente com mulheres grávidas e que amamentam. Sou mãe de duas meninas. Isso já basta para me fazer ter uma clara e indiscutível convicção: o desenvolvimento pleno de uma criança até os primeiros anos de vida depende fortemente de uma relação próxima com a mãe. Desde o ventre materno, os seres humanos têm sensações. Os bebês percebem objetos, cheiros e movimentos ao seu redor. Qualquer desequilíbrio neste início pode trazer consequências físicas, cognitivas, psicológicas e afetivas muitas vezes irreversíveis para a vida adulta. Dito isso, vejo a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir a prisão domiciliar às mulheres grávidas que cumprem cárcere preventivo e às mães de crianças de até 12 anos e me pergunto: em quais condições uma criança se desenvolveria num ambiente carcerário, ainda mais o brasileiro, cujas violações aos direitos humanos são destaques rotineiros na imprensa? Não é necessária muita reflexão para saber que a insalubridade e a falta de estrutura das nossas prisões condenam essas crianças antes mesmo do julgamento de suas mães.

O caso de Jéssica Monteiro, 24 anos, detida pela Polícia Militar de São Paulo por tráfico de drogas em 10 de fevereiro, que entrou em trabalho de parto no dia seguinte e, após receber alta do hospital, voltou para a cela com a criança devido a uma decisão judicial em mantê-la presa reacendeu o debate sobre situações iguais à dela. A cena lamentável em que Jéssica amamenta seu filho em uma cela minúscula e insalubre certamente chocou milhares de mães e pais em todo o país, que devem ter pensado o que seria de seus filhos se passassem por situação semelhante. Uma questão que bastaria um pouco de sensibilidade para tocar a promotora de Justiça. Por essas coincidências da vida, ela, grávida, requereu ao juiz de primeira instância a manutenção do encarceramento da jovem com seu filho recém-nascido. Felizmente, um pedido de habeas corpus pela prisão domiciliar foi aceito e Jéssica deixou a penitenciária feminina no dia 16. Este, porém, não é um caso isolado.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 373 mulheres presas estão grávidas e 249 amamentam em todo o país. As mulheres grávidas em situação de encarceramento têm mais risco de terem uma gestação cheia de problemas e não é preciso pensar muito para saber as razões – stress, carência de cuidados físicos e ameaça dos mais diversos tipos de abuso. As condições de gravidez e parto de mulheres presas no Brasil foi objeto do estudo “Nascer na prisão”, finalizado em 2016 por uma equipe da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, e demonstrou que apenas 35% das mulheres encarceradas tiveram um pré-natal adequado, comparadas a 73% de usuárias do SUS. Para a maioria, a assistência antes do parto se iniciou tardiamente e foi inadequada quanto ao número de consultas. Uma parcela importante sofreu ainda violência na maternidade e recebeu pouco suporte social e familiar no período da gestação, do pré-parto, parto e puerpério. A precariedade de comunicação entre o sistema prisional e a família das mães encarceradas é notória quando se observa que 89% das famílias não foram avisadas sobre o início do trabalho de parto das mulheres.

Grávidas presas no Complexo Penintenciário de Pedrinhas, Maranhão (Mario Tama/Getty Images)

Quando o nascimento é feito na prisão, a separação da mãe e da criança ocorre quase que imediatamente, o que compromete ainda mais um período crítico de ligação. Além disso, é comum a incidência de estresse pós-traumático elevada por várias razões, entre elas o controle por pessoal predominantemente masculino. A amamentação, crucial nos primeiros seis meses de vida, é feita de forma precária e o recém-nascido é o primeiro a sofrer as consequências do encarceramento prematuro.

Sofrem também os filhos com mais idade. Em geral, essas mulheres são arrimos de suas famílias, muitas vezes monoparentais. Na ausência da mãe, os irmãos são obrigados a se separarem para viverem em abrigos ou serem cuidados por parentes próximos ou vizinhos. Outro fator preocupante é a explosão da população carcerária feminina no Brasil. O

Infopen Mulheres divulgou que, entre 2000 e 2014, o número de mulheres presas no país aumentou em 567,4%, enquanto que no mesmo período o encarceramento masculino cresceu 220,2%. Metade dessas mulheres tem entre 20 e 29 anos, 53% é negra, 67,4% não chegou sequer a cursar o ensino médio, 86,4% é solteira e muitas delas são vítimas de violência doméstica cometida por companheiros. Outro dado que merece reflexão é de que 68% do sistema prisional feminino é composto por mulheres presas por tráfico. O cenário revela que a grande maioria de mulheres encarceradas no país vivia em condições de alta vulnerabilidade social antes da prisão e o confinamento tende a piorar esta condição.

"De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 373 mulheres presas estão grávidas e 249 amamentam em todo o país"

A pauta é urgente e não termina apenas na concessão ou não do habeas corpus a mulheres em prisão preventiva que estão grávidas ou possuem filhos de até 12 anos. É necessário criar alternativas ao sistema prisional brasileiro, cuja cultura é do encarceramento em massa. Todos os dias, homens e mulheres em condições sociais precárias são presos com pequenas quantidades de drogas e, ainda que sejam réus primários, nossa legislação os compara a criminosos violentos e a barões do tráfico. A diferença é que estes últimos contam com vastos recursos financeiros e advogados especializadas em afrouxarem suas penas. Ou ainda, sequer são investigados por seus crimes, enquanto a linha de frente desta rede, formada por pretos e pobres em sua maioria, apodrece em nossas prisões sem condições nenhuma de reabilitação social.

A mesma lei federal 13.257/2016, considerada o marco legal da primeira infância no Brasil e que alterou artigos do Código de Processo Penal, prevendo a possibilidade da prisão domiciliar nestes casos, reafirma serem áreas prioritárias para as políticas públicas para a primeira infância a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, bem como a proteção contra toda forma de violência. Ou seja, de nada adianta conceder a prisão domiciliar se a criança e a mãe não tiverem esses direitos assegurados. Os possíveis crimes cometidos por essas mulheres não tiram delas seu direito à dignidade humana. É preciso garantir assistência jurídica, atenção integral à saúde, assistência à infância, programas de apoio e tratamento da dependência química, formação e encaminhamento para emprego após cumprimento de pena e apoio a mulheres vítimas de violência.

E nós, pertencendo à mesma sociedade, não podemos nos abster das nossas responsabilidades também. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8.069/1990) deixa explícito em seu artigo 4º que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos (...)”. Médicos, professores, juízes, delegados, promotores de Justiça, políticos, conselheiros de direitos, advogados, jornalistas, estudantes, enfim, todos nós somos participantes deste sistema de garantia de direitos e precisamos atuar coletivamente em prol de todas as crianças de nossa comunidade. São elas que construirão o Brasil do futuro, e virar as costas para qualquer uma delas é decretar nossa total falência enquanto sociedade civilizada e organizada.