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Dura vida de quem apita

Criticado por jogadores, xingado por torcedores e desmentido pela televisão. O árbitro de futebol, de quem tanto se exige, possui poucos direitos e está a mercê dos dirigentes brasileiros

Por Sálvio Spínola*

query_builder 23 fev 2017, 19h40

* Sálvio Spínola, 48 anos, ex-árbitro de futebol e comentarista dos canais ESPN

O jogo de futebol é uma modalidade, digamos, online. Aquele replay comprometedor, que evidencia a decisão equivocada do árbitro em um lance capital, chega aos ouvidos do apitador em tempo real, embora seja algo vetado pelas atuais regras do jogo. Mas a informação não precisa ser verbal. Alguém dizendo no ouvido do árbitro isso ou aquilo (muito embora essa comunicação explícita também ocorra). Quem não se lembra do lance da cabeçada de Zidane no peito do zagueiro italiano na final da Copa do Mundo de 2006? Não tenha dúvidas que o juiz tomou a decisão de expulsar o jogador francês depois de ser informado pelo quarto árbitro da exibição do replay do lance pelo telão. Se o árbitro toma uma decisão errada, no mesmo instante, o torcedor na arquibancada é informado da falha pelo seu radinho de pilhas ou pelo celular. Em seguida, o estádio inflama-se em fúria. E o dono do apito sabe disso. O inverso também se aplica: se o ambiente está calmo nas tribunas, o árbitro se tranquiliza. Em muitos lances em que a bola sai pela linha de fundo, por exemplo, o árbitro não tem convicção se foi tiro de meta ou escanteio. Aconteceu comigo dezenas de vezes. O que fazer, então? Espera-se uns três, quatro segundos. Observa-se a movimentação dos zagueiros e dos atacantes e toma-se uma decisão. Já tirei dúvidas nesse tipo de lance com base no que os repórteres de campo falavam atrás do gol. Ou seja, ser contrário ao uso de imagens da televisão, do replay em câmera lenta, é não só hipocrisia, como injusto com o árbitro. Mas é preciso que sua utilização seja transparente. A adoção dessa tecnologia tirará um peso gigante das costas de quem apita, deixando-o mais tranquilo para tomar suas decisões. Hoje, o trio de arbitragem “joga contra” 38 câmeras de alta definição e milhares de celulares dos torcendo gravando as jogadas.

Entrei na década de 90 no futebol e, desde aquela época, ouço falar que arbitragem será uma atividade de dedicação exclusiva, reconhecida como uma carreira profissional. Estamos em 2017 e nada mudou. Que fique claro que não existe uma correlação entre a regulamentação da profissão e os erros dentro de campo, mas a insegurança é a mesma. A CBF não tem um quadro árbitros contratados. Ela toma o juiz emprestado, pagando-lhe uma taxa por partida, de cada uma das federações estaduais para o Campeonato Brasileiro. Antes da introdução do sistema de pontos corridos, essa fórmula até funcionava, pois a estrutura do calendário de competições permitia tal organização. Os campeonato estaduais eram relevantes, tinham nível competitivo alto e que ocupavam quase metade do ano. Já o campeonato nacional era mais curto, e até mesmo mais fraco esportivamente falando. O sonho de qualquer árbitro era apitar uma final de Campeonato Paulista, de Carioca, e não de um Brasileiro. Em 2003, com a instauração do Estatuto do Torcedor e mudança de calendário, uma consequência foi esvaziamento dos Estaduais. Mesmo assim, a formação continua de responsabilidade das federações. É um contra-senso.

A escola de arbitragem não forma um bom juiz. Cada Estado tem autonomia para montar o curso. Até hoje tem Federação que faz o curso em um único fim de semana, outras exigem dois anos para obter o diploma. Imagine: com somente três dias de curso a pessoa se torna árbitro e, em pouco tempo, pode estar apitando jogos de primeira divisão. O que forma mesmo é o jogo, a experiência dentro de campo. Por isso, quando os Estaduais eram fortes, esses árbitros ficavam rodando o interior dos estados apitando, de janeiro a agosto, em jogos difíceis. Quando ele chegava no Campeonato Brasileiro para trabalhar, era fácil. Hoje, com a diminuição dos Estaduais, não existem partidas de peso em número suficiente para que o árbitro se desenvolva.

"Hoje, o trio de arbitragem 'joga contra' 38 câmeras de alta definição e milhares de celulares dos torcendo gravando as jogadas"

É inegável que a CBF oferece cursos para os árbitros da elite, muitas vezes chamando instrutores internacionais para clínicas de atualização. Mas e o juiz que tem um trabalho? Ele pode ir a esses cursos, que duram até uma semana, a todo o instante? O árbitro recebe a informação, mas ele realmente está prestando atenção? O índice de absorção dos conceitos ministrados é baixo. Inúmeras vezes eu estava participando de um curso de aprimoramento, mas minha cabeça estava nos problemas do meu trabalho. E quando o árbitro é criticado, a Confederação lava as mãos dizendo que oferece treinamento. A CBF não assume a responsabilidade total pela arbitragem brasileira por uma razão simples: o custo trabalhista. Uma entidade com 500 milhões de faturamento por ano não pode estabelecer um contrato de prestação de serviços, de maio a dezembro, com aqueles árbitros de elite do futebol? O Brasil é um dos países que melhor remunera seus árbitros por partida, mas é também um dos locais onde o juiz menos recebe por ano. No Campeonato Brasileiro do ano passado, que tem 38 rodadas, é bem provável que existam o caso de uns vinte árbitros que apitaram menos de cinco jogos em toda competição. Será que todos eles apitaram tão mal assim? E o que esse árbitro faz no resto do ano? Como ele se sustenta? Na Argentina, por exemplo, o árbitro recebe menos por jogo, mas conta com um valor fixo mensal de 1 000 dólares, pago pela Confederação.

Quando eu comecei na arbitragem, aos 22 anos, eu já trabalhava em empresas multinacionais na área de contabilidade e conciliava as duas atividades. Ao crescer como juiz, vi a necessidade de mudar para uma carreira autônoma, por isso o Direito. Tentava investir nas duas carreiras com o mesmo vigor, mas não foi fácil. Tanto que me formei em Direito em sete anos: trabalhava, estudava e apitava. Não desejo as dificuldades que eu tive para ninguém. É muito difícil ter que conciliar essa vida dupla. Numa quarta-feira, antes de um São Paulo e Portuguesa, estava envolvido no processo de fechamento de uma fábrica. Imagina como estava a minha cabeça depois de demitir 200 funcionários? Chegou uma hora que tive que interromper a reunião. “Qual o motivo?”, me perguntaram. Era para apitar, carregando toda aquela tensão e apenas com o café da manhã no estômago. Em países como Inglaterra, Japão e México, a principal atividade profissional do árbitro é o futebol. Ele pode atuar em outras áreas, mas como um complemento, no seu tempo livre.

No passado, a arbitragem tinha muitos vícios, uma relação promíscua com os clubes. Não raro eram os casos de juizes que tinham relações de trabalho com a direção um clube, apitava campeonatos amadores etc. Até hoje paga-se o preço pelos “pecados” cometidos no passado. A isenção do sorteio, por exemplo, é uma mera ilusão. Como não se confia em quem escala, por casos comprovados de manipulação na escolha de árbitros, optou-se por essa saída. Ao colocar oito nomes aleatórios na disputa, corre-se o risco de colocar um juiz pouco experiente em uma partida tensa, um clássico, na qual o erro é muito mais visível aos olhos do torcedor. Sei também de casos de recebimento de presentes, no meu tempo eram aparelhos de videocassete ou peças de picanha. E o time que presenteava o juiz sempre ganhava. Isso colaborou para a formação do mito do juiz ladrão. Depois do caso do Edílson Pereira de Carvalho, em 2005, ficou claro que existe um grupo de risco na arbitragem brasileira, formado por juízes em fim de carreira e que não têm outra atividade profissional. Quem completa 45 anos sabe que tudo aquilo, muito em breve, vai acabar. O poder, o dinheiro, as viagens. Por isso o risco. Se o Edílson tivesse uma estabilidade profissional, acredito que ele não teria entrado no esquema.

Ilustração por AlphaDog