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Para tornar a carne bovina mais confiável

Atos ilícitos como os revelados pela Operação Carne Fraca mostram que é preciso aperfeiçoar o sistema de rastreabilidade da cadeia produtiva

Por Nelson Roberto Furquim*

query_builder 21 jun 2017, 19h45

*Doutor em Nutrição Humana Aplicada (Pronut) pela Universidade de São Paulo (USP) e docente na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo

O conceito de rastreabilidade sempre esteve diretamente associado a aspectos produtivos, com o objetivo de acompanhamento e de controle de todas as etapas da cadeia. É uma ferramenta utilizada para melhorar os níveis de segurança, o controle de qualidade, a detecção de fraudes, o atendimento das demandas dos consumidores, o alinhamento com padrões internacionais de mercado e a gestão de cadeias logísticas complexas. No Brasil, em 2002, foi instituído um sistema de rastreabilidade, o SISBOV, que tinha como objetivo estabelecer normas para a produção de carne bovina com garantia de origem e qualidade. É um sistema com adesão voluntária, mas que é obrigatório para a exportação para mercados que exijam rastreabilidade. O Ministério da Agricultura disponibiliza o serviço e delineou os requisitos necessários para garantir a rastreabilidade, mas os investimentos para a implantação da infraestrutura nas fazendas ficam a cargo dos pecuaristas, implicando custos adicionais para eles. É um aspecto crítico que compromete a abrangência e a efetividade do sistema.

O Ministério da Agricultura disponibiliza sistema de rastreabilidade, mas investimentos para a implantação nas fazendas ficam a cargo dos pecuaristas (Getty Images)

Os sistemas de rastreabilidade implantados nas cadeias produtivas alimentares de diversos países, como o Canadá, os Estados Unidos e os da União Europeia, por promoverem a caracterização da procedência e o registro do estado sanitário, visam a contribuir para a garantia da qualidade dos alimentos ofertados. Também favorecem a conquista de novos mercados, ao atenderem às exigências de diferentes países para a importação desses produtos. Os rebanhos bovinos são suscetíveis a vários tipos de doenças que tanto podem afetar a produtividade quanto comprometer a qualidade da carne ofertada e comercializada. Consequentemente, com o aumento das relações comerciais internacionais, vários países passaram a impor exigências e adotar barreiras não tarifárias para importação do produto, com o intuito de proteger seus consumidores. Essas estratégias se intensificaram com os incidentes epidemiológicos de amplo escopo observados no cenário internacional ao longo da década de 1990, como os casos da Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB), conhecida como a “doença da vaca louca”, e a gripe aviária. Tanto os consumidores como as autoridades sanitárias passaram então a se preocupar cada vez mais com a qualidade e a segurança dos alimentos comercializados, o que levou à definição e adoção de legislações mais rigorosas relacionadas à produção e à comercialização de produtos cárneos.

A atividade pecuária e, em particular, as exportações de carne bovina têm um papel de destaque no setor agropecuário brasileiro. O Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina, e isso representa uma parcela substancial das exportações totais do país, proporcionando milhões de empregos formais. No entanto o surto de febre aftosa ocorrido em 2005 no estado do Mato Grosso do Sul, que atingiu a produção nacional, e, mais recentemente, situações como as apontadas pela Operação Carne Fraca colocam em questão a efetividade do SISBOV para atender às exigências de rastreabilidade de mercados internacionais e também de outros órgãos do governo, responsáveis por garantir a qualidade e a segurança de alimentos disponibilizados no mercado doméstico. Essa operação, deflagrada em março de 2017, envolveu mais de três dezenas de frigoríficos brasileiros suspeitos de terem adulterado a qualidade de carnes comercializadas no mercado doméstico e voltadas para exportação. Essa manobra ilícita envolveu a venda de carnes com prazo de validade vencido, cortes de carne maquiados para melhoria de sua aparência, produtos destinados à merenda escolar e também a exportação de carne contaminada com microrganismos patogênicos. Consequentemente, as exportações brasileiras de carne bovina despencaram, com a suspensão das mesmas pelos principais países importadores, e provocaram questionamentos acerca dos riscos para a saúde pública, decorrentes da oferta de produtos alimentícios impróprios para o consumo. Situações dessa natureza podem desencadear consequências econômicas e sociais, como a diminuição da produtividade dos rebanhos e da rentabilidade da pecuária. O aspecto nevrálgico reside no fato de o país ter ou não um sistema de rastreabilidade na cadeia produtiva de carne bovina que, em tese, contribui para a modernização do setor. Embora seja direcionado para as exportações, o sistema pode ter repercussões positivas na produção para o mercado interno, ao favorecer a qualidade da carne ofertada e, assim, contribuir para a proteção da saúde populacional.

"Para que o sistema de rastreabilidade e outros mecanismos de controle para a oferta de alimentos seguros possam funcionar de maneira correta, é essencial a fiscalização de agentes sanitários qualificados e éticos"

Entretanto, para que o sistema de rastreabilidade e outros mecanismos de controle para a oferta de alimentos seguros possam funcionar de maneira correta, é essencial a fiscalização de agentes sanitários qualificados e éticos, tanto do Ministério da Saúde quanto do Ministério da Agricultura. Situações como as apontadas pela Operação Carne Fraca podem colocar em dúvida a efetividade de um sistema estruturado à semelhança de outros existentes em países industrializados e que operam de forma eficaz. Pesquisas com atores da cadeia produtiva da carne bovina no Brasil indicam que, para o sistema ser considerado eficaz, é preciso que haja maior articulação entre os integrantes dessa cadeia, incluindo o governo em todas as esferas. Dentre as sugestões de adequações para que o sistema se torne mais eficaz estão medidas como fiscalização mais rígida, frequente e eficiente das operações, feita por profissionais comprovadamente qualificados e éticos, uso de infraestrutura tecnológica acessível e disponível a todos os elos da cadeia produtiva, possibilitando acompanhamento online das diferentes etapas de produção, simplificação dos procedimentos e diminuição da burocracia. Com essas adequações, serão obtidos avanços expressivos na efetividade do sistema, trazendo melhorias à gestão das propriedades rurais envolvidas e otimizando a coordenação dentro da cadeia do agronegócio da carne.