Eleições em regimes democráticos costumam ser períodos caracterizados pelo entusiasmo. No decorrer das campanhas, afirmamos os nossos princípios éticos e as convicções que nos fazem votar em um ou em outro candidato. Em contrapartida, costumam também emergir conflitos pessoais – na vida social e familiar – que podem causar constrangimentos. São temas que, em condições normais de temperatura e pressão, não provocam grandes problemas. Mas, em épocas eleitorais, podem esmorecer a alegria do gesto político. Ao que tudo indica, desta vez, as coisas estão se passando de maneira ainda mais exacerbada. A psicologia de grupo, por meio da qual as pessoas se agregam pela aderência acrítica a um ideal comum, tem tornado qualquer debate real em torno de ideias e propostas algo impraticável. No seu lugar, surgem manifestações tipificadas pela truculência, pelo ódio, pelo rebaixamento humilhante dos adversários, pela paranoia e pela angústia. Mais do que isso, temos visto o medo concreto da violência que poderia atingir a integridade física e psíquica dos atores sociais. São consequências tristes das poderosas forças motrizes da fé dogmática e das paixões destrutivas que, em determinados períodos históricos, dominam as sensibilidades humanas.
Nos consultórios de psicanálise, os especialistas têm escutado modalidades de sofrimento oriundas de rupturas de relações íntimas encenadas, sobretudo, nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp pelo celular. “Ele ou ela saiu do grupo ofendido” é uma frase que passou a fazer parte do nosso cotidiano. Essa ruptura dos laços afetivos é o prenúncio do pânico que, por sua vez, deriva do desamparo traumático que vem sendo produzido em uma ordem social cada vez mais distinguida pelo egoísmo, pela segregação e pelo desrespeito às diferenças.
O EXERCÍCIO DA TOLERÂNCIA - Eleitores de Fernando Haddad e Jair Bolsonaro conversam na Avenida Paulista (Jefferson Coppola)
O recurso a uma conhecida alegoria pode contribuir para uma leitura psicanalítica do momento em que vivemos. O livro é o do Êxodo, da Bíblia. Nele, narra-se que os hebreus recém-libertos da escravidão no Egito não suportaram esperar Moisés descer do monte Sinai com as tábuas da lei, os dez mandamentos. Em um movimento que a psicanálise chama de regressão, o povo erigiu um bezerro de ouro para idolatrar. Frente ao desaparecimento do líder e diante da angústia das incertezas provocadas pela nova condição de liberdade, os hebreus optaram por reeditar o Egito no deserto do Sinai. Ao construir um novo ídolo, eles retomaram a escravidão no âmago de cada alma. O resultado dessa história é bastante conhecido. Como punição divina, os hebreus foram mantidos quarenta anos peregrinando no deserto, para que apenas a nova geração – que não conheceu o chicote – adentrasse a terra prometida. Ela, então, seria povoada de homens livres. Para essa nova geração, o pacto social se basearia não mais na obediência e na idolatria cegas, mas no exercício de interpretação da lei, objetivando o bem comum.
Duas advertências podem ser imediatamente deduzidas desse mito fundador do espírito de liberdade que inspirou a tradição judaico-cristã e seus desdobramentos modernos no Ocidente. A primeira delas é que compartilhamos de uma tentação regressiva para a servidão voluntária, uma atitude que foi nomeada pelo austríaco de Sigmund Freud (1856-1939) de masoquismo. Na vida social, esse comportamento se expressa pela adesão a lideranças que ficam tanto mais fascinantes quanto mais incorporam a máscara da onipotência. Elas se oferecem a nós como a encarnação do Messias, que poderá derrotar todos os nossos inimigos, sejam eles reais ou imaginários.
A segunda advertência que a história bíblica traz é que essa tentação se torna tanto maior quanto mais intenso for o pânico social e a angústia. A princípio, reagimos negativamente frente à tarefa de estabelecer pactos sociais baseados nos princípios da liberdade compartilhada e do respeito às diferenças. Liberdade implica o exercício da diferença. E abraçar aqueles que não são iguais a nós ameaça, sobretudo, valores que subsistem apenas pela mera conservação dos costumes e da tradição. Assim, o empoderamento das mulheres e da comunidade LGBTI, o sistema de cotas nas universidades, os direitos trabalhistas, a preservação das terras e da cultura indígena e os demais avanços de uma vida social dinâmica intimidam valores tradicionais pelo simples fato de modificarem as paisagens às quais estamos habituados a contemplar.
"Liberdade implica o exercício das diferenças, o que ameaça valores que só subsistem graças à tradição"
A analogia com o momento em que vivemos hoje no Brasil é autoevidente. Mesmo assim, tomarei a indiscrição de exercitá-la junto ao leitor. Como brasileiros, nosso Sinai indicaria o percurso rumo à consolidação da ordem democrática, após duas décadas de ditadura militar onde vigoraram limites estreitos a nossa liberdade de pensar, sentir e agir, bem como a de se associar com nossos pares. Nosso chicote aludiria a censura, prisões injustificadas, tortura, assassinatos e desaparecimento de corpos. São essas algumas das violências perpetradas pelos representantes do regime militar, que vigorou de 1964 a 1985. Outro expediente comum a esse período era a patrulha ideológica, que impedia nossos companheiros da resistência de questionar quaisquer diretrizes partidário-ideológicas.
Nossa espera pela democracia prometida apontaria para o desalento provocado por sucessivos governos que, ao lado das promessas relativamente cumpridas – como controle da inflação, estabilidade monetária, mobilidade social, construção de sistemas abrangentes de saúde e educação, diminuição do analfabetismo e da fome –, foram também atravessados pela corrupção, pela irresponsabilidade de representantes eleitos e pelo saque ao patrimônio público. No entanto, esses governos, por serem democráticos, podem ser aperfeiçoados e corrigidos de acordo com a Justiça, a nossa voz, nossas ações e nosso voto.
A moral da história é que, no contexto eleitoral que estamos vivendo, nos deparamos com duas alternativas. A primeira é ancorada no princípio de realidade. Por isso mesmo, é a opção sempre mais dolorosa. Ela inclui a reiteração daquele que é conhecido como o menos pior dos regimes políticos, a democracia. Abarca também a necessidade de seguir nosso caminho de construção de um país norteado pelos valores de um Estado laico, da liberdade e do respeito às diferenças. A outra alternativa seria a de erigir um bezerro de ouro, deixando-nos entorpecer e cegar pelo seu brilho ofuscante.